04
Set 10

NOITE DA RIA

Há formas indistintas que na noite da ria
se movem, silhuetas passando junto à água
um barco mal visível ao candeio
mas não, é só alguém que na vazante
anda na maré baixa transportando
um candeeiro que projecta raios
iguais aos das estrelas, sempre vivas
nas noites do verão; deixo de ver por vezes
essa estrela nas mãos de quem a usa para
paralisar os chocos na areia
sob a água de súbito avistados
rápido corre um barco despertando
a surda ondulação brevemente acabada
as aves só o canto as eleva da água
que durante algum tempo fica a bater nos barcos
sem outro som até que novamente os pios
no rumor do silêncio como sobre
uma sombra refazem o seu ritmo

Gastão Cruz
publicado por RAA às 19:37 | comentar | favorito

do parto à partida

à M.M.

foram os últimos
a desocupar a mãe

encontraram facilmente a boca
cada dedão, um mamilo

passo ante passo
invulgarmente, amantes

galgando trilhos sagrados
de emei chan e annapurna

ou dessincronizados em lisboa,
casablanca, vancouver

namorando montras, altares
decorados, os pés

abandonando o berço
desse primeiro beijo

paulo da costa
publicado por RAA às 14:18 | comentar | favorito

DEO QUAE A DEO

Na verde serra onde vivo, entre arvoredos e fontes,
vejo a neblina que passa, roçando a crista dos montes,
e mais acima, castelos, que a lenda veste de bruma,
enquanto o mar, muito ao longe, rebenta em vagas de espuma.

Na velha igreja afonsina, onde fui a baptizar,
com minha doce metade formei autêntico par;
e, dois num, lá confiámos ao Jardineiro incriado,
as lindas flores nascidas do nosso beijo sagrado.

Desço ao campo, dia a dia, levando os montes comigo,
a a meu modo cavo e lavro, para ter meu pão de trigo,
mas à tarde enxugo a testa e do meu ócio disponho,
tecendo com sol e névoa as filigranas do sonho.

E embora mostre, vivendo, que só de sonhos sou rico,
não desconheço a miséria dos palácios que edifico:
palácios cheios de nada, vazios em quanto meus,
nos quais a Deus só consagro o que me é dado por Deus.

Francisco Costa
publicado por RAA às 11:54 | comentar | favorito
04
Set 10

TRÊS LIÇÕES DE ARQUITECTURA

I

Tem a ver com a asfixia, o dilúvio, a
Ausência, há um longo corredor em celas
Até ao jardim da Villa Schlikker
Ponte cubóides, hemorragia, imensa escadaria
O ser é uma estrutura sem portas

Sem janelas
Folhas de zinco revestem a pradaria
A paisagem é um carvalho ale
mão
Assusta, a frieza dos materiais

Os visitantes são envolvidos pelo
Museu dos judeus, o labirinto é fractal
Espiral. Visitarei todos os seres
Que não querem mal
A todos os seres

Carlos Couto Sequeira Costa
publicado por RAA às 04:14 | comentar | favorito