14
Set 10

TRISTÍSSIMA CANÇÃO

Nesta saudade em que vivo
Há um mistério que eu estranho:
É pesar-me o bem que tive
Mais do que os males que tenho.

E ainda é maior a amargura,
Lembrando que o bem passado
Foi menos do que mesquinho,
pois foi apenas sonhado!

Nasceu dos meus pensamentos
Altivos e namorados,
E fez, morrendo, a harmonia
Dos meus versos magoados...

E mesmo assim, que saudade
Eu tenho, de encanto estranho,
Que lembra o bem que eu não tive,
E é o maior mal dos que eu tenho!...

Guilherme de Faria
publicado por RAA às 19:46 | comentar | favorito

ESMERALDA

Esmeraldas no heráldico diadema,
No lóbulo da orelha cor-de-rosa;
O colo -- arde na luz maravilhosa
De um tríplice colar da mesma gema.

No peito, aberto céu de alvura extrema,
Entre nuvens de tule vaporosa,
Verde constelação, na forma airosa
De principesca e recortada estema.

Agrilhoa-lhe o pulso um bracelete,
Glaucas faíscas desprendendo; ao cinto
Um florão de esmeraldas por colchete;

Nos dedos finos igual pedra escalda...
Mas deixam todo esse fulgor extinto
Os seus dois grandes olhos de esmeralda!

B. Lopes
publicado por RAA às 17:49 | comentar | favorito

PRESÍDIO

Nem todo o corpo é carne... Não, nem todo.
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco...?

E o ventre, inconsistente como o lodo?...
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor... Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo...

É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio

vulto da Primavera em pleno Outono...
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!

David Mourão-Ferreira
publicado por RAA às 16:47 | comentar | favorito

MUNDO DE AVENTURAS

uma pequena aldeia na planície arménia
nevoeiro matinal no porto de dieppe
o silvar agudo no cimo dos cárpatos
um castelo solitário num lago escocês

um junco chinês no mar do japão
um trilho de camelos na rota da seda
um catre vazio no mosteiro da arrábida
uma via romana na serra do gerês

uma mesa de cozinha e odores de outono
um eucaliptal onde brinco com o avô
o último número da revista tão esperada
despojos da infância que se me acabou

21 de Março de 2001
publicado por RAA às 14:37 | comentar | favorito

CREPUSCULAR

Tive uma rosa de fogo
A arder no meu coração.
Ganhou-ma o destino ao jogo
De dias que já lá vão.

-- Rosa vermelha de esperança,
A estas horas sem cor,
Porque me vens à lembrança
Como pecado de amor?

(Cansados, cansam-me passos
Que não dei... por me cansar.
Levo, pesados, nos braços
Os restos dum sonho ao mar.)

António de Sousa
publicado por RAA às 12:36 | comentar | favorito

MAGIA DOS PIRILAMPOS

Cintilam na resteva os pirilampos:
-- Bailados de luz viva, logo morta.
Anda a crença a bater de porta em porta
Que há alminhas penadas pelos campos.

Luzem na floresta às vezes tantos
Que ao luzeiro macabro, além, da horta
Um frio gume de medo me recorta
-- O infantil medo que se esconde aos cantos.

E despedindo lume entre os silvedos,
Cruzam de agoiro a noite e de bruxedos,
Luzes de feiticeiras contradanças.

«Pirilampos debaixo da maquia»
Que vezes me embruxou vossa alquimia
Que magos! -- «para engano das crianças».

Afonso Duarte
publicado por RAA às 11:32 | comentar | favorito
14
Set 10

INCÊNDIO

Daqui, desta falésia cor de lava,
Dum amarelo rútilo e sangrento,
Outrora debruçava-se um convento
Sobre a maré tumultuosa e brava...

E, à noite, quando no clamor do vento,
Ao largo, o temporal se anunciava,
E a voz das águas, soluçante e cava,
Punha um trovão nas furnas, agoirento,

Logo, piedosamente, cada monge
Suspendia uma lâmpada à janela,
E tangia a sineta para o coro...

E, no mar alto, o navegante, ao longe,
Via um farol luzir em cada cela,
E cada rocha a arder, em sangue e ouro...

Cândido Guerreiro
publicado por RAA às 10:39 | comentar | favorito