24
Set 10

CATIVO O OUVIDO VEM

Cativo o ouvido vem
buscando a união
no exílio do inteligível.

Bruscamente
eis a separação conquistada
o acontecer exacto
de pensar o não pensar
que o apetite do divino
trabalha
amplo e profundo.

O pensamento cria
e ultrapassa
o seu próprio abismo
e o desejo de ouvir
inventa
surdamente
a sua própria melodia.

Ana Hatherly
publicado por RAA às 23:43 | comentar | favorito

PONY EXPRESS

Se as paixões
não são correspondidas
a culpa pode muito bem
ser dos Correios

Dick Hard
publicado por RAA às 19:13 | comentar | favorito

...

Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos meus olhos tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te
Quão cedo de meus olhos te levou.

Camões
publicado por RAA às 17:20 | comentar | favorito

A MEIO DO CAMINHO

Fico entre o céu e a terra,
Choro só para dentro.
Sou como a árvore nua
que ao alto os ramos indica:
ergue as asas, mas não voa,
têm raízes, mas não desce.

Alberto de Lacerda
publicado por RAA às 15:54 | comentar | favorito

FUGA

Canto a noite dos clandestinos, os que se
encostam aos muros e falam com o vento,
os que se vestem de negro, para se confundirem
com a noite, os que se deixam perseguir pela
sua sombra, e a expulsam de trás de si, quando
alguém se aproxima. Acompanho os seus gestos lentos,
saboreando o instante do próximo
encontro; e ouço as suas palavras na voz baixa
do cais, confundindo-se com
o ruído da água contra a pedra. Entro com eles
na barca da solidão, falando com o vazio
como se a única resposta fosse
a que nasce do musgo das caves. Afasto
de ao pé deles os cães que o seguem;
e vejo-os desaparecerem, mais
e mais longe, onde o futuro se dissipa
sob a névoa cinzenta das madrugadas
que nunca chegaram.

Nuno Júdice
publicado por RAA às 14:33 | comentar | favorito

DO PESADELO I

De quinta para quinta,
os cães cantam
a madrugada de glória,
em que o Sol negro
floresce de nuvens negras.
Indo por atalhos sem sombra,
ouvi-os entoar
o canto da insónia.

Fiama Hasse Pais Brandão
publicado por RAA às 12:17 | comentar | favorito
24
Set 10

CIDADANIA

Buquê de ruídos úteis
o dia. O tom mais púrpura
do avião sobressai
locomovida rosa pública.

Entre os edifícios a acácia
de antigamente ainda ousa
trazer ao cimo a folhagem
sua dor de apertada coisa.

Um solo de saxofone excresce
mensagem que a morte adia
aflito pássaro que enrouquece
a garganta da telefonia.

Em cada bolso do cimento
um lenta aranha de gás
manipula o dividendo
de um suicídio lilás.

Natália Correia
publicado por RAA às 11:23 | comentar | favorito