08
Out 10

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Escrever é que nos deixem rir e chorar sozinhos.

Ramón Gómez de la Serna

(Jorge Silva Melo)
publicado por RAA às 20:00 | comentar | favorito

ERGO UMA ROSA...

Ergo uma rosa, e tudo se ilumina
Como a lua não faz nem o sol pode:
Cobra de luz ardente e enroscada
Ou vento de cabelos que sacode.

Ergo uma rosa, e grito a quantas aves
O céu pontuam de ninhos e de cantos,
Bato no chão a ordem que decide
A união dos demos e dos santos.

Ergo uma rosa, um corpo e um destino
Contra o frio da noite que se atreve,
E da seiva da rosa e do meu sangue
Construo perenidade em vida breve.

Ergo uma rosa, e deixo, e abandono
Quanto me dói de mágoas e assombros.
Ergo uma rosa, sim, e ouço a vida
Neste cantar das aves nos meus ombros.

José Saramago
publicado por RAA às 15:28 | comentar | favorito

CANTIGA

Antes que o Sol se levante
Vai Vilante a ver o gado,
Mas não vê Sol levantado
Quem vê primeiro a Vilante.

                       VOLTAS

É tanta a graça que tem
Com uma touca mal envolta,
Manga de camisa solta,
Faixa pregada ao desdém,
Que se o Sol a vir diante
Quando vai mungir o gado,
Ficará como enleado
Ante os olhos de Vilante.

Descalça às vezes se atreve
Ir em mangas de camisa,
Se entre as ervas neve pisa
Não se julga qual é neve;
Duvida o que está diante
Quando a vê mungir o gado,
Se é tudo leite amassado,
Se tudo as mãos de Vilante.

Se acaso o braço levanta
Porque a beatilha encolhe,
De qualquer pastor que a olhe
Leva a alma na garganta;
E inda que o Sol se alevante
A dar graça e luz ao prado,
Já Vilante lha tem dado,
Que o Sol tomou de Vilante.

Francisco Rodrigues Lobo
publicado por RAA às 14:22 | comentar | favorito

E O SONO: SÓ MOMENTO

                                                                                                                                                                                                         Death thou shalt (not) die

A morte e nunca mais cheiros violentos
ou doces de algodão: gasolina ou o chão
de cera fresca, a terra de manhã,
a pele -- aquela, ou de pasta de escola.
A morte e nunca mais o sol feroz
da primavera em fim. O verde tão fecundo
e desabitual todos os anos. O gesto
humano e brando do amor. Carta de luz.
Olhar que se pendura por varanda
de pássaro minúsculo ou passeios
criando a arte em pedras reduzidas.
E nunca mais os poliedros lisos
dos teus olhos centrando-se nos meus.
A morte e nunca mais -- que está morta.
Só momentaneamente adormeceu.

Ana Luísa Amaral
publicado por RAA às 12:43 | comentar | favorito
08
Out 10

A CORRENTE

Lá vão as folhas secas na corrente...
Lá vão as folhas soltas das ramadas...
Hastes envelhecidas e quebradas
galgando as asperezas da vertente.

A cheia arrasa os frutos e a semente,
a terra inculta, as várzeas fecundadas,
e vai perder-se, ao longe, nas quebradas,
numa fúria cruel e inconsciente.

Em nós ainda é mais funda, ainda é mais vasta,
esta ansiedade enorme e sem perdão,
que nos fere, nos tolhe e nos devasta...

As árvores desprendem-se e lá vão...
Mas nós ficamos porque nada arrasta
as raízes fiéis dum coração.

Fernanda de Castro
publicado por RAA às 10:58 | comentar | favorito