13
Out 10

ALFORRECA E FANECA

Pobre de mim, tão Faneca,
Alforreca me fascina.
Sigo atrás da sua coroa,
dos seus terríveis cabelos
de gelatina e de prata:
só o vê-los me atordoa,
só o tocá-los me mata.

Violeta Figueiredo
publicado por RAA às 18:32 | comentar | favorito

POEMAS DA AMIGA

1

A tarde se deitava nos meus olhos
e a fuga da hora me entregava Abril.
Um sabor familiar de até-logo criava
um ar, e, não sei por que, te percebi.

Voltei-me em flor. Mas era apenas tua lembrança.
Estavas longe, doce amiga; e só vi no perfil da cidade
o arcanjo forte do arranha-céu cor-de-rosa
mexendo asas azuis dentro da tarde.

Mário de Andrade
publicado por RAA às 17:33 | comentar | favorito

LER ESCREVER

Quatro fragmentos

1
Não escrevo para me ler,
Leio para me escrever.

2
Não vivo o que escrevo
Não escrevo o que vivo.
Escrever é outra
Vida viver.

3
Entre a página escrita
E a página a escrever,
Que leitura nos separa,
Que escrita nos aproxima?

4
Pela Vida é que vamos,
Não pela escrita que temos.

Lisboa, 1993

Liberto Cruz
publicado por RAA às 16:08 | comentar | favorito

...

Revimos a grosseira superfície do
amor
Ninguém pudera corrompê-la tanto
por actos e palavras. Estivemos
novamente deitados na aspereza
do seu leito
Um ramo na mão tinhas e quiseste
medi-lo com os lábios e metê-lo

no centro doloroso do teu corpo
Eu via as tuas mãos que procuravam
inseri-lo e guardavam
nas linhas ávidas o seu limite grosso
Interrompeste o
sono magoado do meu corpo
e comigo
dormiste sobre as manchas depois

Gastão Cruz 
publicado por RAA às 14:18 | comentar | favorito
13
Out 10

NAMORO DE ALDEIA

Duas horas e meia da manhã:
o trabalho que espera sossegado,
o cansaço do fogo na lareira,
a caneta riscando e o cantar do galo
estremunhado

Deve pensar que são seis horas, este galo,
e o meu trabalho em sono, o fogo que me fala,
uma unha roída,
um cigarro fumado,
o café a fazer e o poema desfeito
em só cadência

Que tema é este sério a esta hora
breve da manhã, com o trabalho à espera
e o fascínio do fogo?

Deve pensar que possui tema, este poema
que não me evita e me namora ousadamente
a desoras na aldeia

O fogo estala e outro galo canta
e o meu trabalho enjoa sossegado
No romance parado do meu poema e eu,
o café já saiu, começou a chover

Escorrem gotas macias no telhado,
o fogo morre, o trabalho desperta
abrindo um olho lento

e o meu namorado parvo e tonto
carregado de imagens (e de outras coisas leve)
sai furtivo a desoras

Só deixou por roer
a unha do polegar
da minha mão direita

Ana Luísa Amaral
publicado por RAA às 12:45 | comentar | favorito