19
Out 10

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Arco na noite
Gato preto dispara lentamente
O cinzento colorido
Das suas estrelas de nervos.
O teu corpo de mulher
Dispara o sal puro
E a maciez da espuma
Do arco branco da areia da praia.

Joaquim Gomes Mota
publicado por RAA às 23:49 | comentar | favorito

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Esta noite a tua boca é a mais bela rosa do universo
Bebo para afogar este pesadelo
Que o vinho seja rubro como as maçãs do teu rosto
E os meus versos tão leves como os anéis dos teus cabelos

Omar Khayam

(J. Sousa Braga)
publicado por RAA às 17:03 | comentar | favorito

SOLEMNIA VERBA

Disse ao meu coração: Olha por quantos
Caminhos vãos andámos! Considera
Agora, desta altura fria e austera,
Os ermos que regaram os nossos prantos...

Pó e cinzas, onde houve flor e encantos!
E noite, onde foi luz de Primavera!
Olha a teus pés o mundo e desespera,
Semeador de sombras e quebrantos!

Porém o coração, feito valente
Na escola da tortura repetida,
E no uso do penar tornado crente,

Respondeu: Desta altura vejo o Amor!
Viver não foi em vão, se é isto a vida,
Nem foi de mais o desengano e a dor.

Antero de Quental
publicado por RAA às 15:41 | comentar | favorito

DE UM NOVO CONTINENTE

As árvores são sombras das raízes
E os homens são sombras de outras raízes
Mais fundas. Assim, dentro de mim,
Uma sombra cobre todas as luzes e todos os sons
Velando a minha alegria intacta e longínqua
E prometendo o paraíso perdido mas não esquecido.
Imagino o meu céu nos meus limites
E o céu dos outros ainda nos meus limites.
As minhas mãos atravessam o universo misterioso
E tocam as ignotas fontes da poesia e da vida.
O meu olhar, porém, fica comigo e chora
Esse amor de lágrimas e tristezas
Onde, como solitária ilha de coral,
A minha existência espera o nascimento de um novo continente.

António Quadros
publicado por RAA às 14:24 | comentar | favorito

JARDIM DE INVERNO

Na noite violenta os homens fingem que passeiam
e os senhores olham do alto de uma torre de marfim
-- são os pássaros ou são as árvores que chilreiam? --
Deixem dormir os homens nos bancos de jardim.

Deixem dormir os homens sossegados,
enrolados no frio como se tivessem cobertores,
-- os jardins parecem lares civilizados
com tapetes verdes e com flores.

Desfilam os sonhos macios e amáveis
e no sono dos homens adormece o desespero.
Ninguém mais diz que os bancos são inconfortáveis,
o que seria exagero.

E é evidente que eles são exagerados
quando estampam no rosto o sofrimento,
hipócritas que de braços cruzados
dormem felizes ao relento.

Parecem procurar, quando passeiam,
quem tem culpa que o mundo seja assim,
-- são os pássaros ou são as árvores que chilreiam? --
Deixem dormir os homens nos bancos de jardim.

Sidónio Muralha
publicado por RAA às 12:15 | comentar | favorito
19
Out 10

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As árvores são lugares imensos, como pálios
dobrados sobre o tempo. Creio que existem
como mutação da realidade, como o movimento
imperceptível de Deus sobre as águas. Existem
expostas à erosão, na curvatura quebrada
da superfície, no sacrário de uma natureza ferida.

Existem como uma porção infinitesimal da alegria
do mundo. Depois morrem sem que ninguém perceba
e a sua sombra perdura à morte, à decomposição lenta
das suas estruturas silenciosas como abismos,
indecifráveis como mistérios antigos, extensíveis
como os braços de Deus em combustão.

José Rui Teixeira
publicado por RAA às 10:56 | comentar | favorito