20
Out 10

recitativo VII

a necessidade
é a mãe de toda a cultura:

vi os do porto,
visível multidão de almas,
irados,
invadindo;

diziam a cidade
minguada de bom vereamento e o único
precisamente o único sítio que tinham
era onde cair mortos
e nem sequer dentro das casas: estas
têm quinze famílias diferentes
e pela sua
dilatada extensão se chamam ilhas

Vasco Graça Moura
publicado por RAA às 22:55 | comentar | favorito

SETEMBRO

                ...quanto mais envelheço, mais pueril é a luz
                mas essa vai comigo.

Nesses dias distantes eu vagueava pelas matas
enchia a espigarda de chumbo e disparava
contra o silêncio das árvores altas
só para assistir ao espectáculo dos pássaros em debandada
experimentava uma exaltação -- de que tenho hoje pudor
perante imagens que partem:
fragmentos rápidos, passagens, segredos que se apagam
nesses dias distantes nem suspeitava
a vida pode ser interminável

o que deixaste abandonado regressa aprende-se depois
quando, por exemplo, a esquecida infância se parece
com certos cães deixados de propósito a muitos quilómetros
que ladram não se percebe como
à porta da velha casa

José Tolentino Mendonça
publicado por RAA às 17:02 | comentar | favorito

ATÉ SE REVOLTAREM OS ESCRAVOS

Até se revoltarem os escravos.
Até se rebentarem as comportas.
Até sismos divinos, roncos cavos
Da terra inquieta sob as pedras mortas
Sacudirem a nossa quietação.
Até que luas doidas sobre o mar
Sejam sinal da Alucinação.
Até se extinguir a gentileza
Que mais que nos liberta, nos corrompe.
Até sermos capazes de amar,
Até sermos capazes de morrer.

M. António
publicado por RAA às 15:33 | comentar | favorito

DÚVIDA

Este -- o soneto da Saudade inquieta
Em que, lembrando as horas de paixão,
Pergunta à Musa o sonho do Poeta
Se ela é fiel à sua adoração...

Este -- o ritmo de amor em que, discreta
E oculta e desejosa de ilusão,
Minh'alma balbucia a dor secreta
De nunca dominar teu coração...

Este -- o soneto do viver profundo,
Em que a frase mais pobre é todo um mundo
De incerteza, de mágoa e puro ardor...

Vai para ti meu coração veemente...
-- Mas tu, Amor, se existes realmente,
Nem mesmo sabes que és o meu Amor!

João de Barros
publicado por RAA às 12:29 | comentar | favorito
20
Out 10

PERENIDADE

Tombam as folhas, segundo a Natureza;
a Árvore, essa, permanece no chão que a justifica.

Assim nos Outonos da Humanidade:
morrem os homens,
mas aquela -- fica.

E se a Árvore de novo floresce,
mais verde em cada renovo,
também a Humanidade cresce, cresce,
e a seiva corre mais rica
no génio de cada Povo.

André Varga
publicado por RAA às 11:05 | comentar | favorito