21
Out 10

NASCE O HOMEM NASCE O AMOR

Tenho os olhos limitados
pelas grades da minha cela,
são vinte e quatro quadrados
não corre a vida por ela

e a minha liberdade
feita sombra peregrina
sai de manhã, entra à noite
nem a prisão domina

não quero cama nem mesa
nem chave de qualquer porta,
a mim basta-me a certeza
que a minha voz vos conforta

nasce o homem, nasce o amor,
nasce a força, morre o medo,
morre o homem, nasce a dor,
morre a voz fica o segredo.

Amadeu Teles Marques
publicado por RAA às 23:58 | comentar | favorito

HESITAÇÃO

De que serve a tão límpida balada
Que, na rua, cantemos? Pobre dela
Se há tanta gente a ouvi-la, disfarçada
Por detrás das cortinas da janela!

Pedem-me versos de tema triste.
-- Pagam? -- pergunto.
-- Sim.
-- Viva o talento!

E como a voz do mercador insiste,
Hesito entre um enterro e um casamento...

Pedro Homem de Melo
publicado por RAA às 19:18 | comentar | favorito

POETA E REALIDADE (DIDÁTICA)

A poesia é a lógica mais simples.
Isso surpreende
aos que esperam ser um gato
drama maior que o  meu sapato
aos que esperam ser o meu sapato
drama tanto mais duro que andar descalço
e ainda aos que pensam não ser meu andar descalço
um modo calmo.

(Maior surpresa terão passado
os que julgam que me engano:
ah não sabem quanto quero o sapato
não sabem quanto trago de humano
nesse desespero escasso.
Não sabem mesmo o que falo
em teorema tão claro.

José Carlos Capinan
publicado por RAA às 18:08 | comentar | favorito

...

Se um dia a sede
de uns lábios desarmados
ou o veneno alastrar

e as crianças, amando o pão,
respirarem

Talvez o declinar da sombra
na face amada
ou um gesto
desenhado contra o vento

ensinem

o esquecido ofício
da alegria.

Fernando Jorge Fabião
publicado por RAA às 16:52 | comentar | favorito

AO DESCONCERTO DO MUNDO

Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos
E para mais me espantar
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado
Fui mau mas fui castigado.
Assim que, só para mim,
Anda o mundo concertado.

Camões
publicado por RAA às 15:44 | comentar | favorito

POEMA CONFIADO À MEMÓRIA DE NORA MITRANI

Se eu pudesse dizer-te: -- Senta aqui
nos meus joelhos, deixa-me alisar-te,
ó amável bichinho, o pêlo fino;
depois, a contra-pêlo, provocar-te!
Se eu pudesse juntar o mesmo fio
(infinito colar!) cada arrepio
que aos viajeiros comprazidos dedos
fizesse descobrir novos enredos!
Se eu pudesse fechar-te nesta mão,
tecedeira fiel de tantas linhas,
de tanto enredo imaginário, vão,
e incitar alguém: -- Vê se adivinhas...
      Então um fértil jogo amor seria.
      Não este descerrar a mão vazia!

Alexandre O'Neill
publicado por RAA às 14:19 | comentar | favorito

...

Vi eu donas, senhor, en cas d'el-rei,
fremosas e que parecian ben
e vi donzelas muitas u andei
e, mha senhor, direi-vos ua ren:
    a mais fremosa de quantas eu vi
    long' estava de parecer assi

Come vós; e muitas vezes provei
se veeria de tal parecer
algua dona, senhor, u andei
e, mha senhor, quero-vos al dizer:
    a mais fremosa de quantas eu vi
    long' estava de parecer assi

Come vós; e, mha senhor, preguntei
por donas muitas, que oí loar
de parecer, nas terras u andei,
e, mha senhor, pois mh'as foron mostrar,
    a mais fremosas de quantas eu vi
    long' estava de parecer assi.

João Airas de Santiago
publicado por RAA às 12:47 | comentar | favorito
21
Out 10

...

Sabemos que o tempo passou
Que alguma coisa deveria ter sido dita
(talvez depois, talvez mais tarde)
Deixamos atrás de nós
Uma sequência desconexa de gestos irreparáveis
E, feridos,
Por todas as coisas
que poderíamos ter evitado a nós próprios
Caminhamos para o silêncio
E para a escuridão indefinível dos bosques.

Luís Falcão
publicado por RAA às 11:13 | comentar | favorito