22
Out 10

RICTOS

          Houve uma cidade erguida sob o elã das amazonas, mulheres à desfilada pela madrugada ecúlea.
          O sol ainda esbatido cintilava por seus corpos nodosos, atléticos, enquanto os homens dóceis, serviçais, fitavam o silêncio, ou mordiam areia com a nuca em brasa.

José de Matos-Cruz
publicado por RAA às 21:58 | comentar | favorito

Obra Poética

autor: José Carlos Ary dos Santos (Lisboa, 7.12.1936 - 18.1.1984)
título: Obra Poética
organização e notas: Francisco Melo
editora: Edições «Avante!»
local: Lisboa
ano: 2002
edição: 6.ª (1.ª, 1994)
capa: Colectivo das Edições «Avante!»
págs.: 451
dimensões: 21,8x15,3x2,9 cm. (cart.+sobrecapa)
impressão: SIG - Sociedade Industrial Gráfica
obs.: inclui juvenília (Asas, de 1952)
publicado por RAA às 21:00 | comentar | favorito

FELICIDADE

As pálpebras do dia
fecham-se no horizonte.

Na ávida transparência
dos nossos corpos
abre-se o amor
que sabe a mar,
sal e terra lavrada.

Unidos,
ardendo na mesma fogueira,
bebemos na vigília
a noite inteira.

Lá fora,
sem aviso,
rompe a aurora.

Telo de Morais
publicado por RAA às 19:53 | comentar | favorito

IDEIAS

Honra: Brio: Dignidade:
Onde estais? Quem vos preza?
-- Não posso viver pobre. A frialdade
Que me dá toda a pobreza!

Lembram-me bichos, carochas, centopeias,
Musgo, paredes húmidas, bolores,
Ao pensar na pobreza! -- Ideias.
E causam-me suores.

Afonso Duarte
publicado por RAA às 18:17 | comentar | favorito

SALMO

Ninguém nos moldará de novo em terra e barro,
ninguém animará pela palavra o nosso pó.
Ninguém.

Louvado sejas, Ninguém.
Por amor de ti queremos
florir.
Em direcção a ti.

Um Nada
fomos, somos continuaremos
a ser, florescendo:
a rosa do Nada, a
de Ninguém.

Com
o estilete claro-de-alma,
o estame ermo-de-céu,
a corola vermelha
da purpúrea palavra que cantámos
sobre, oh sobre
o espinho.

Paul Celan

(Yvette Centeno e João Barrento)
publicado por RAA às 16:55 | comentar | favorito

DESDICHADA

Sozinha e ao desamparo ela vivia
Nesse pobre casebre abandonado;
Não conhecera pai nem mãe; doía
Fitar aquele rosto macerado.

Nenhum rapaz esbelto a convidava
Para os descantes da festiva aldeia;
E consigo a mesquinha suspirava:
«Doce Jesus, por que nasci tão feia?»

Quando a Lua no céu azul surgia,
De alvo banhando a múrmura devesa,
No postigo do albergue a sós gemia,
Triste mulher sem viço nem beleza.

Chamou-a Deus enfim! Quando passava
O singelo caixão na triste aldeia,
Melancólico o povo murmurada:
«Vai tão bonita, olhai!, e era tão feia!...»

Gonçalves Crespo
publicado por RAA às 14:35 | comentar | ver comentários (2) | favorito

O SONHO SEM DESTINO

Se os caminhos são breves
e os dias tão compridos,
e as tuas mãos mais leves
que a espuma dos vestidos;

se é de ti que me ondeia
uma brisa subtil...
E a vaga diz: -- Sereia!
E o sonho diz: -- Abril!

Se cresces e dominas
os campos que acalento,
e inundas as colinas
de fontes que eu invento;

se tens na luz dos olhos
o misterioso apelo
das cidades de fogo,
das cidades de gelo;

se podes bem guardar
na tua mão fechada
o meu altivo Tudo
e o meu imenso Nada;

se cabe nos meus braços
a bruma que tu és,
e em algas e sargaços
te abraço nas marés;

se, puro, na presença
da nossa grande Casa,
pões na voz de horizonte
um lume de asa e brasa.

Não sei porque te sonho
na sombra matinal,
e ao meu lado te vejo,
real e irreal.

Sabeis -- adaga fria,
que ao meu peito cintilas --
onde se oculta o dia
das aragens tranquilas?

Se tudo sabes, mata
com dedos de oiro fino,
ou com gume de prata,
o sonho sem destino!

Natércia Freire
publicado por RAA às 12:36 | comentar | favorito
22
Out 10

...

Pela estrada que vai, erma e comprida,
Entre montanhas duras a trepar,
Duma olaia, do vento sacudida
Morre uma folha triste, devagar.

Cantam à roda dela, em despedida,
A névoa, a brisa, o pó, mais o luar,
Porque a folha vai dar a volta à Vida
E mais verde e mais linda há-de tornar.

Mas a olaia que sabe quantas penas
Custa à raiz fazer um ramo apenas,
Um tronco, quanto, ao Sol custou de passos;

Como uma mãe, transida de receio,
Abraça as outras filhas, junto ao seio,
Aperta as folhas entre os braços!

Nunes Claro
publicado por RAA às 11:02 | comentar | favorito