25
Out 10

O GAIO E O PAPAGAIO

Não sei quem teve a ideia
de contar a um velho gaio
que outra ave papagueia
e se chama papagaio.

Disse o gaio: «Papa-quê?»
Disse o outro: «Papa-gaio!»
Disse o gaio: «Pois você
diga lá a esse bicho
que, se não muda de nome,
não me escapa, ainda o lixo;

que um gaio tem muita fome,
que sou um papão de um raio,
que este velho gaio o papa,
que sou papa-papagaio.»

Quando isto contaram a
um medroso papagaio,
gaguejou: «Eu... sou... pa... pa...»
e depois teve um desmaio.

Engasgou-se a rir, o gaio,
do desmaio do papagaio.

Leonel Neves
publicado por RAA às 22:59 | comentar | favorito

ANESTESIA

Palpo o pó da terra
e em meus dedos
só sinto
o receio de pisar
terrenos proibidos.

Aspiro o aroma das flores
e só me figuro
o desespero
e a vala comum.

Entoo canções alegres
e o eco
responde-me em gritos amargurados.

Quero sonhar dias felizes
futuros cor de rosa
mas só vejo
meus dias escuros
carregados de tristeza.

Agostinho Neto
publicado por RAA às 20:21 | comentar | favorito

A EUGÉNIO DE ANDRADE, DEPOIS DE LER OS LUGARES DO LUME

Entre os lugares do lume acontecia
que a tua voz as músicas movia

e era outra paisagem de repente
a levantar-se como sarça ardente,

como se os prisioneiros da linguagem
se tornassem só lume, só passagem

e na terra que foi melancolia
ardesse a voz inteira da poesia.

(Mas nos lugares do lume que disseste
um pur si muove brilha e aparece.)


publicado por RAA às 18:11 | comentar | favorito

OS PASSOS NA NOITE

Ouve, querida, na noite angustiada,
sem portas mas perfeita como um ovo,
como soa e ressoa a martelada
de cada passo do povo.

Ouve, na noite descarnada e enxuta,
o som que sobe, vertical e inteiro.
Ouve, querida, até às lágrimas, escuta
o oceano prisioneiro.

Noite implacável, arrepiada de vultos
como versos que mordem o papel
em que crianças, com gestos de adultos,
enchem de grãos de areia a nossa pele.

Noite aos quadrados, grades de gaiola,
cada quadrado fecha uma canção,
era aos quadrados no tempo da escola,
continua aos quadrados desde então.

Mas para lá dos barrancos, das ciladas,
para lá do engano e o desengano
cada pancada assobia madrugadas
cada pancada tem um som humano.

Compassados os passos, contra o vento,
escalam a noite descarnada e enxuta.
Viris, soam, ressoam no cimento,
ouve, querida, até às lágrimas, escuta.

Sidónio Muralha
publicado por RAA às 14:27 | comentar | favorito
25
Out 10

POENTE

Morre a luz sobre o ar leve e macio,
É tarde, passa o vento devagar,
E o povo dos pinheiros, junto ao rio,
Em filas põe-se a vê-lo ir para o mar.

Sofregamente, as coisas, já com frio,
Guardam restos da luz, inda no ar,
E a sombra, pelo solo ermo e bravio,
Sonolenta, começa-se a deitar.

No ocaso, um rude monte, com cuidado,
Que o Sol não fique nele ensaguentado,
Parece agora mais redondo e mole;

E, no nome da Terra, em frente ao espaço,
Um castanheiro, ao longe, ergue o seu braço,
Comovido a dizer adeus ao Sol!

Nunes Claro
publicado por RAA às 12:44 | comentar | favorito