27
Out 10

FIGUEIRA COM PÁSSAROS

Nas traseiras da minha graça há uma
figueira      Ainda os figos não são figos
e já os pássaros
os pássaros entram nas verdes polpas com os seus
bicos
espetam as almas no doce amargo dos frutos
e depois queixam-se    A toutinegra não se cala    o melro
passa por cima    a pardalada prefere o arbusto do telhado
e as migalhas da vizinha velha que sabe o que fazer para
manter os diálogos
Porque há presença do Tejo no hálito dos pássaros
os figos hão-de ser melhores que os concorrentes orientais
os talvez de Alexandria    ou de qualquer oriente
Boa graça     bons figos
publicado por RAA às 19:14 | comentar | favorito

PIRÂMIDE INVERTIDA

Na individualidade triangular do ápice
Sujaremos com terra a púrpura pegajosa

Do lado branco pobre e básico
O índio e a febre amarela
O negro e a festa trágica

Em breve trajetória dialética
Mudará o artista paralelas intocáveis
Empurrando as linhas-retas-pontilhadas
Tingindo a santa trindade mística

Pois o triângulo é pedra e lápide
Do tumulto do sustento insuportável
Desses faraós reclassificados

Ricardo G. Ramos
publicado por RAA às 16:48 | comentar | favorito

GUINCHO

O Sol põe-se
sobre o lento bater das ondas,
e despede-se
do meu corpo de areia.
publicado por RAA às 15:32 | comentar | favorito

O VELHO PALÁCIO

Houve outrora um palácio, hoje em ruínas,
Fundado numa rocha, à beira-mar...
Donde se avistavam lívidas colinas,
E se ouve o vento nos pinheirais pregar.
Houve outrora um palácio, hoje em ruínas...

Nesse triste palácio inabitável,
As janelas sem vidros, contra os ventos,
Batem, de noite, em coro miserável,
Lembrando gritos, uivos e lamentos.
Nesse triste palácio inabitável...

Só resta uma varanda solitária,
Onde medra uma flor que bate o norte,
Sacudida de chuva funerária,
Lavada de um luar branco de morte.
Só resta uma varanda solitária...

Como nessa varanda apodrecida
Em minha alma uma flor também vegeta...
Toda a noite dos ventos sacudida,
Íntima, humilde, lírica, secreta,
Como nessa varanda apodrecida...

Gomes Leal
publicado por RAA às 14:28 | comentar | favorito

LES POÊTES SONT DES POÈMIERS

                                                                                                                                                                                                            A João Carlos de Azevedo

Entre os poetas e as árvores, os elos
São tais, há tão estreitas alianças,
Que revelam, nas verosimilhanças,
O sentimentos líricos mais belos.

A cumprirem destinos paralelos,
Em confraternidade, sem mudanças,
Na primavera se enchem de esperanças
E no outono de pomos amarelos.

Ambos, continuamente, fazem versos.
Na aparência mostrando-se diversos,
São seus pontos discordes diminutos.

Em colaboração, inspiradores,
Tendo a mesma pureza nos dão flores,
Tendo a mesma bondade nos dão frutos.

Martins Fontes
publicado por RAA às 12:37 | comentar | favorito
27
Out 10

PENUMBRA

Na penumbra dos ombros é que tudo começa
quando subitamente só a noite nos vê
E nos abre uma porta      nos aponta uma seta

para sermos de novo quem deixámos de ser

David Mourão-Ferreira
publicado por RAA às 11:07 | comentar | favorito