02
Nov 10

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Que podes dizer quando no engano
souberes que não há dádiva sem vantagem,
utilidade sem mágoa? As palavras
esperavam-te, era por mim que lutava,
um passo em falso e logo outro, noites
adivinhando ao longe o delírio, as luzes
voltadas para um rosto que as não
queria, lágrima numa chantagem, um
pouco de carinho, o resultado final
do precário sossego. Que posso dizer
quando houver inusitada calma,
a tranquilidade dos que preparam
com o seu cuidado a divisão
da hipocrisia? Que só de fúrias
vivemos, só de arriscados lances.

Helder Moura Pereira
publicado por RAA às 23:06 | comentar | favorito

LIÇÃO

                   Aprendíamos a amar, aprendíamos / a morrer

É no verão que se aprende a poesia,
disseste; e em cada um dos verões que a vida
nos traz, em que se aprende e desaprende
o mais certo, entre o amor e a morte,
que cada um tem de saber. No quintal,
onde já não existe a romãzeira da infância,
ouvindo o vento que sobe da terra, trazendo
um antigo furor de ervas e raízes; ou
no largo aberto para o tempo que foi,
e esse que há-de vir. Abro contigo o livro
branco de todos os lugares e de todos
os nomes: o livro da poesia, aprendida
com o desfolhar dos verões, enquanto
as mães se despedem da vida, e uma baça
adolescência se confunde com a névoa
de agosto. Leio devagar, como se
interpretasse, e um fogo embarcado
nos olhos enfunasse a mais obscura
das imaginações: o verso, aprendido
no leito da memória, no verão em
que se aprende a poesia, disseste.

Paris, 1-XI-99

Nuno Júdice
publicado por RAA às 14:19 | comentar | favorito

SONETO DA VISITAÇÃO

Vinde, adorai! Criados e parentes!
Tenho o presépio em nossa casa armado.
Vinde adorar o meu menino amado,
Honrá-lo com carinhos, com presentes!

Muito quietinho, nas roupinhas quentes,
O infante dorme, dorme aconchegado.
É lindo, pois não é? o meu morgado?
Que tu, Senhor, em graça mo aviventes!

E, de joelhos, com um ar de boda,
Adora e pasma-se a assistência toda,
Como diante dum festivo altar.

Que perfeição! Que enlevo de criança!
-- E pedem num louvor que não descansa
Que Deus nos dê saúde p'ra o criar.

António Sardinha
publicado por RAA às 11:54 | comentar | favorito
02
Nov 10

FAROL ETERNO

Decorreram os anos. Pouco a pouco,
O vendaval, à solta, por vingança,
Quebra os vitrais e pela igreja avança,
E rompe em uivo prolongado e rouco...

E foge, e torna, e, com a chuva, louco,
Em desvairado sacrilégio, dança,
E abate claustros e ao abismo os lança,
E tudo alui, da abóbada ao cabouco...

Tudo caíu... Mas uma claridade,
Azul, fugaz, em noites muito escuras,
Ondula e sobe e, entre os escombros, erra...

-- Oh! a sobrevivência da piedade! --
São fogos fátuos, são as sepulturas
Ainda agora a alumiar, da terra...

Cândido Guerreiro
publicado por RAA às 10:47 | comentar | favorito