06
Nov 10

"AVE-MARIAS" NA MINHA ALDEIA

 "Tudo quanto há neste vale é cheio duma lembrança triste..."
                                                                                                                                                                                                                                                                 Bernardim Ribeiro

Da torre, tange o sino brandamente
"Ave-Marias", pela branca aldeia,
Enquanto vem dum lado, a lua cheia,
E doutro, se despende o sol-poente...

Pelos freixos do "Pego", em minha frente,
Cansado já, um rouxinol gorgeia.
Vagam murmúrios d'água que serpeia,
-- Fontes deixando o vale, saudosamente...

E alguém vai cantando, estrada fora,
Um fado triste como a voz do mar
E o vago soluçar das ventanias...

Ó meu Amor! quisera, nesta hora,
Reclinar-me no teu seio, p'ra chorar,
Enquanto o sino tange "Ave-Marias"...

Bernardo de Passos
publicado por RAA às 20:59 | comentar | favorito
06
Nov 10

REENCONTRO

A velha ponte-cais de traves carcomidas,
O morro triste, a antiga fortaleza...
O deserto a avançar sobre o mar
E a polvilhar a cidade pobre da sua poeira amarela...
O deserto a sepultar a cidade pobre...

As hortas do Giraul, mancha tímida e verde no areal.
O jardim emurchecido, queimado e ressequido pelo sol de África,
-- Parque frondoso que a memória guardou,
Imagem que a vida destruiu neste reencontro.
O jardinzinho da cidade,
Já sem o coreto para música,
Mas com a fileira dos espectros...

A longa, a interminável fileira dos espectros...
A Miss Blond a acompanhar os meninos a passeio,
O Tigre, pachorrento e mansarrão.

Os pretos, o olhar submisso e espantado,
Com as correntes aos pés,
Na rua de casas térreas e de piso mole.
A Miss Blond deixou de acompanhar os meninos a passeio,
O Tigre, erguido a cão nobre, morreu de velho,
Os pretos quebraram as correntes,
Só os espectros ficaram, pávidos,
Onde os havia deixado;
Só eles povoam a lembrança,
Habitam a cidade;
Só as suas vozes ecoam no deserto,
As vozes estremecidas,
As vozes perdidas
Na casa desabitada que a poeira do deserto cobriu,
Na vida que a poeira do tempo cobriu,
na morte, na saudade, na morte...

     Baía de Moçâmedes, 8 de Dezembro 50.


Joaquim Paço d'Arcos
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