17
Nov 10

A...

Nome, que não se diz; nome, que não se escreve:
Quem vai meter num som o mundo, a imensidão?...
O Amor que nome tem? real, jamais o teve...
Escrever!... pois é pouco um livro -- o coração?!...

Antero de Quental
publicado por RAA às 23:59 | comentar | favorito

NATAL CHIQUE

Percorro o dia, que esmorece
Nas ruas cheias de rumor;
Minha alma vã desaparece
Na minha pressa e pouco amor.

Hoje é Natal. Comprei um anjo,
Dos que anunciam no jornal;
Mas houve um etéreo desarranjo
E o efeito em casa saiu mal.

Valeu-me um príncipe esfarrapado
A quem dão coroas no meio disto,
Um moço doente, desanimado...
Só esse pobre me pareceu Cristo.

Vitorino Nemésio
publicado por RAA às 18:18 | comentar | favorito

FESTA

Como o potro jovem quer a égua,
como o fogo em lava quer a água,
como o milhafre ansiando a légua,
como a brasa que queima lá na frágua,

como o mar em vida e sem trégua,
como o vento em fúria e sem mágoa,
assim te quero eu: água e égua --
assim te quero eu: légua e frágua.

Como o vinho que a alma embriaga,
como a dança, os frutos e a festa,
como a sarça que arde viva e lesta,

assim te quero eu: dança e sarça,
em fruto e festa e em vinha e garça --
e assim me quero em potro, mar e vaga.

Manuel Cândido
publicado por RAA às 16:56 | comentar | favorito

ENLEIO

Quando, no outono, ocasos tristes douram
Ruínas que a Esperança veste de heras,
E há fluidos de perdão no olhar das feras,
E as almas só existem no que foram;

E quando os céus, proféticos, agouram
Verdades que ressurgem de quimeras;
Com grinaldas de extintas primaveras
As mãos da Morte a tua fronte enlouram!

E, pálida, sorris, embevecida;
Em teu olhar onde delira o outono
Vejo extinguir-se em luz a minha vida!

Por outros mundos a tua alma voa!
E na saudosa tarde de abandono
Um sorriso de flor nos abençoa.

Mário Beirão
publicado por RAA às 15:53 | comentar | favorito

AS ROSAS

Quando à noite desfolho e trinco as rosas
É como se prendesse entre os meus dentes
Todo o luar das noites transparentes,
Todo o fulgor das tardes luminosas,
O vento bailador das Primaveras,
A doçura amarga dos poentes,
E a exaltação de todas as esperas.

Sophia de Mello Breyner Andresen
publicado por RAA às 14:23 | comentar | favorito

NASCIMENTO

A minha égua lazã
Teve uma linda cria,
Nascida antemanhã,
Mal, ao de leve, despontava o dia...

Cá fora,
Na placidez da hora enregelada e fria,
Silenciosa e deserta
A terra dormitava.
E pela porta aberta
Da velha estrebaria,
Um hálito de vida se escapava
E, como fumo, manso se perdia.

Sombras de uma lanterna fraca
Dançavam, ágeis, na parede escura.
E brandamente,
Naquela luz opaca,
Tudo envolvia uma doçura quente.

Sobre a palha doirada,
Enquanto o sol aos poucos
Ia surgindo à porta,
A mãe jazia, agora descansada.
E a dois passos, imóvel e estirada,
A cria parecia ter nascido
Pra logo ficar morta,
O corpo já doído
Do trabalho da vida começada.

Venho assomar-me à porta,
A contemplar o meu amigo dia.
E o campo, todo branco de geada,
Brilha até onde a minha vista alcança...
E, infantilidade,
Ou despropositada poesia,
O nascimento, a hora, a luz do dia,
Dão-me um fecundo amanhecer de esperança.

Francisco Bugalho
publicado por RAA às 12:31 | comentar | favorito
17
Nov 10

ESPERA

A noite fechada trouxe-me cá fora, ao alto portão de ferro. Agarro-me às grades como um escravo da luz de breu. Passo o portão e em dois passos estou na abadia que parecia distar léguas. Um cheiro fétido a suor e a burel revelam um monge que me fita silencioso. Trespassa-me uma ventania de claustro e o piso, antes terroso, é agora de pedra. Não consigo articular uma palavra, apenas sons abafados pelos sinos que me ensurdecem. Os olhos, de dentro do capuz, indicam agora um rectângulo da laje. Gravado está o meu nome, o dia do meu nascimento, e o desta noite.

Agosto de 2000
publicado por RAA às 11:03 | comentar | ver comentários (2) | favorito