22
Nov 10

...

A nada imploram tuas mãos já coisas,
Nem convencem teus lábios já parados,
        No abafo subterrâneo
        Da húmida imposta terra.
Só talvez o sorriso com que amavas
Te embalsama remota, e nas memórias
        Te ergue qual eras, hoje
        Cortiço apodrecido.
E o nome inútil que teu corpo morto
Usou, vivo, na terra, como uma alma,
        Não lembra. A ode grava,
        Anónimo, um sorriso.

Ricardo Reis
publicado por RAA às 23:15 | comentar | favorito

A MAIOR DOR HUMANA

Que imensas agonias se formaram
Sob os olhos de Deus! Sinistra hora
Em que o homem surgiu! Que negra aurora,
Que amargas condições o escravizaram!

As mãos, que um filho amado amortalharam,
Erguidas buscam Deus! A Fé implora.
E o céu que respondeu? As mãos baixaram
Para abraçar a filha morta agora.

Depois, um pai que em trevas vai sonhando,
E apalpa as sombras deles onde os viu
Nascer, florir, morrer!... Desastre infando!

Ao teu abismo, pai, não vão confortos.
És coração que a dor empederniu,
Sepulcro vivo de dois filhos mortos.

Camilo Castelo Branco
publicado por RAA às 18:09 | comentar | favorito

...

Estes meus olhos nunca perderán,
senhor, gran coita, mentr' eu vivo for;
e direi-vos, fremosa mha senhor,
destes meus olhos a coita que han:
     choran e cegan, quand' alguen non veen,
     e ora cegan por alguen que veen.

Guisado teen de nunca perder
meus olhos coita e meu coraçon,
e estas coitas, senhor, mias son:
mais os meus olhos, por alguen veer,
     choran e cegan, quand' alguen non veen,
     e ora cegan por alguen que veen.

E nunca já poderei haver ben,
pois que Amor já non quer nen quer Deus;
mais os cativos destes olhos meus
morrerán sempre por ver alguen:
     choran e cegan, quand' alguen non veen,
     e ora cegan por alguen que veen.

João Garcia de Guilhade
publicado por RAA às 17:04 | comentar | favorito

TARDE

Na tarde quieta
parece provável
que a inquietude desperte
com a brisa
que há-de soprar.

Armando Taborda
publicado por RAA às 15:56 | comentar | favorito

ENTARDECER

Um barco que passa uma ave que voa
Um azul que fica na retina
Um rosto que sonha numa canoa

Um barco que passa uma ave que voa
Um desejo que fica pelo ar
Azul e penetrante como o mar

Passa o barco lentamente
Passa a tarde passa a vida
E um vulto que ao passar canta baixinho

Existe ao longe um ar tranquilo
Sossegado como buda de marfim
Quem disse que ali era a cidade!

Há um barco que passa uma ave que voa
Um azul que fica na retina
Um rosto que sonha numa canoa.

Henrique Guerra
publicado por RAA às 14:11 | comentar | favorito
22
Nov 10

ALMA PERDIDA

Toda esta noite o rouxinol chorou,
Gemeu, rezou, gritou perdidamente!
Alma de rouxinol, alma da gente,
Tu és, talvez, alguém que se finou!

Tu és, talvez, um sonho que passou,
Que se fundiu na Dor, suavemente...
Talvez sejas a alma, alma doente
De alguém que quis amar e nunca amou!

Toda a noite choraste... e eu chorei
Talvez porque, ao ouvir-te, adivinhei
Que ninguém é mais triste do que nós!

Contaste tanta coisa à noite calma,
Que eu pensei que tu eras a minh'alma
Que chorasse perdida em tua voz!

Florbela Espanca
publicado por RAA às 11:32 | comentar | favorito