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Dez 10

RIMANCE (na forma da lhaneza popular)

Debaixo daquela árvore
'stá um menino a brincar,
'steja sombra esteja sol,
nunca deixa de folgar.

E a árvore foi crescendo
foi crescendo para o ar...
e o menino foi crescendo
já não sabia folgar.

Debaixo daquela árvore
com ELA está a falar.
A árvore já é grande
e o menino vai casar.

Um dia lá muito ao longe
'stava o menino a pensar,
e quedou-se mudo e triste
por já não saber folgar.

Já passaram muitos anos
por cima do seu pensar.
Debaixo daquela árvore
'stá um velhinho a chorar...

-- Porque choras tu velhinho?
o que te faz soluçar?
-- Se eu estou já tão velhinho
porque não hei-de chorar?

Quando eu era pequenino
vinha para aqui folgar,
agora que sou velhinho
venho para aqui chorar.

Uma voz se ouviu então
que vinha ao alto do ar:
-- Só és velho e vais morrer
por ter 'squecido o folgar...

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

À sombra da linda árvore
uma cruz foram plantar,
com um letreiro que diz
cousas que fazem cismar:

O SABER A VIDA, MATA.
O NÃO-SABER, FAZ CRIAR.
A MORTE SÓ CRIA A VIDA
P'RA MORRER DEPOIS DE AMAR.

Alberto de Hutra
publicado por RAA às 23:58 | comentar | favorito

...

Vós mi defendestes, senhor,
que nunca vos dissesse ren
de quanto mal mi por vós ven,
mais fazede-me sabedor,
por Deus, senhor, a quen direi
quan muito mal [lev' e] levei
por vós, se non a vós, senhor?

Ou a quen direi o meu mal,
se o eu a vós non disser?
Pois calar-me non m' é mester
e dizer-vo-lo non m' er val.
E, pois tanto mal sofr' assi,
se con vosco non falar i,
por quen saberedes meu mal?

Ou a quen direi o pesar
que mi vós fazedes sofrer,
se o a vós non for dizer,
que podedes conselh' i dar?
E, por en, se Deus vos perdon,
coita d'este meu coraçon,
a quen direi o meu pesar?

D. Dinis
publicado por RAA às 17:19 | comentar | ver comentários (2) | favorito
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PROGRAMA

Para Miguel Torga

Seja a poesia
O que nós quisermos que seja...
...Não venha ao sabor do dia
Porque os dias são instantes no caminho

--: Não cante a voz
Mais alto que nós!

António Neto
publicado por RAA às 15:43 | comentar | favorito

SONETO

Canta. Busca na vida o que é perfeito.
Olha o sol e não queiras outro guia.
Sonha com a noite e absorve, aspira o dia,
Tal uma flor que te florisse ao peito.

Da terra maternal faze o teu leito.
Respira a terra e bebe o luar. Confia.
Faze de cada pena uma alegria
E um bem de cada mal insatisfeito.

Colhe todas as flores do jardim,
Todos os frutos do pomar e enfim
Colhe todos os sonhos do universo.

Procura eternizar cada momento,
Fecha os olhos a todo o sofrimento
E terás feito a carne do teu verso.

Fernanda de Castro
publicado por RAA às 15:20 | comentar | favorito

DENTRO DAS IMAGENS

Os poemas têm veneno na boca.

Na estrada da minha vida
plantei a árvore
sem saber quem era.

Em que parte do planeta
há mais ódio? A matéria
erosiva transforma o corpo
e não há regresso. Não
restará um monte de estrume.

Em todo o lado
parece que o mundo em desordem
pouco a pouco enlouqueceu
e os homens atam a corda
à espera que aconteça.

São infelizes
mas não o suficiente.
Não sabem dizer
por que se esquecem de amar.

Isabel de Sá
publicado por RAA às 14:29 | comentar | favorito

RORY GALLAGHER: FOLLOW ME

A voz
grave, quase gutural,
amacia cada riff
dedilhado com nervo,
como se a vida se esvaísse
das cordas daquela fender.

Puro malte irlandês.
publicado por RAA às 12:26 | comentar | ver comentários (2) | favorito
15
Dez 10

NOSSA SENHORA

Tenho ao cimo da escada, de maneira
Que logo, entrando, os olhos me dão nela,
Uma Nossa Senhora de madeira
Arrancada a um Calvário de capela.

Põe as mãos com fervor e angústia. O manto
Cobre-lhe a testa, os ombros, cai composto;
E uma expressão de febre e espanto
Quase lhe afeia o fino rosto.

Mãe das Dores, seus olhos enevoados
Olham, chorosos, fixos, muito além...
E eu, ao passar, detenho os passos apressados,
Peço-lhe: -- «A sua benção, Mãe!»

Sim, fazemo-nos boa companhia,
E não me assusta a sua dor: quase me apraz.
O Filho dessa Mãe nunca mais morre. Aleluia!
Só isto bastaria a me dar paz.

-- «Por que choras, Mulher?» -- docemente a repreendo.
Mas à minh'alma, então, chega de longe a sua voz
Que eu bem entendo:
-- «Não é por Ele...»
                 -- «Eu sei! Teus filhos somos nós».

José Régio
publicado por RAA às 11:18 | comentar | favorito