31
Jan 11

CANTO E LAMENTAÇÃO NA CIDADE OCUPADA (3)



Não fora o grito a faca
de súbito rasgando
a fronteira possível
Não fora o rosto   o riso
a serena postura
do cadáver na praia

Não fora a flor a pétala
recortada em vermelho
o longínquo pregão
o retrato esquecido
o aroma da pólvora
a grade na janela

Não fora o cais   a posse
do nocturno segredo
a víbora   o polícia
o tiro   o passaporte
a carta de paris
a saudade da amante

Não fora o dente agudo
de nenhum crocodilo

Não fora o mar tão perto
Não fora haver traição

Daniel Filipe
publicado por RAA às 23:54 | comentar | favorito

MULTIDÃO

Uma folha tomba no plátano, um frémito sacode o imo do cipreste,
És tu que me chamas.

Olhos invisíveis sulcam a sombra, penetram-me como à parede os pregos,
És tu que me fitas.

Mãos invisíveis nos ombros me tocam, para as águas dormentes do lago me
                                                                                                [atraem,
És tu que me queres.

De sob as vértebras com pálidos toques ligeiros a loucura sai para o cérebro,
És tu que me penetras.

Não mais os pés pousam na terra, não mais pesa o corpo nos ares, transporta
                                                                                 [-o a vertigem obscura,
És tu que me atravessas, tu.

Ada Negri

(Jorge de Sena)
publicado por RAA às 15:47 | comentar | favorito
31
Jan 11

LE THÉ

Miss Hellen, versez-moi le Thé
Dans la belle tasse chinoise,
Où des poissons d'or cherchent noise
Au monstre rose épouvanté.

J'aime la folle cruauté
Des chimères qu'on apprivoise:
Miss Hellen, versez-moi le Thé
Dans la belle tasse chinoise.

Lá, sous un ciel rouge irrité,
Une dame fière et sournoise
Montre en ses longs yeux de turquoise
L'extase et la naïveté;
Miss Hellen, versez-moi le Thé.

Théodore de Banville
publicado por RAA às 11:14 | comentar | favorito
30
Jan 11

...

Principio a escrever
e letra a letra construo uma casa
leve e obscura como um poema

Escrevo como quem da mágoa
se despede e é outra cor

O espanto inunda as mãos (aves sem peso)
e uma canção antiga
nasce no interior das sílabas

Um saber precário consome a minha voz
Um pedaço do mar
Um véu rasgado

Olho devagar os rostos
(luz matinal)
e à volta dos lugares
desenho um arco de orvalho e mel.

Fernando Jorge Fabião
publicado por RAA às 23:51 | comentar | favorito
30
Jan 11

...

Todo o poeta quando preso
é um refugiado livre no universo
de cada coração
na rua.

O chefe da polícia
de defesa de segurança do estado
sabe como se prende um suspeito
mas quanto ao resto
não sabe nada.

E nem desconfia.

José  Craveirinha
publicado por RAA às 19:40 | comentar | favorito
29
Jan 11

Caminhos da Moderna Poesia Portuguesa


título: Caminhos da Moderna Poesia Portuguesa
antologiadora: Ana Hatherly (Porto, 1929)
os poetas: Alberto de Lacerda, Alexandre O'Neill, António de Cértima, António de Navarro, António Quadros, António de Sousa, David Mourão Ferreira, Eugénio de Andrade, Fernanda de Castro, Fernando Pessoa, Joaquim Paço d'Arcos, Jorge de Sena, José Régio, Mário Beirão, Miguel Torga, Natália Correia, Natércia Freire, Pedro Homem de Mello, Ruy Cinatti, Sebastião da Gama, Sophia de Mello Breyner Andresen, Tomaz Kim, Vitorino Nemésio.
colecção: «Educativa», Série G - «Literatura e Pensamento Portugueses», #8
editor: Direcção-Geral do Ensino Primário
local: [Lisboa]
data: 1960
capa: Ruy Pacheco
vinhetas: Ruy Pacheco e Mário Pacheco
págs.: 120
dimensões:16,5x11x1 cm. (brochado)
 impressão: Gráfica Boa Nova
publicado por RAA às 23:01 | comentar | ver comentários (3) | favorito
29
Jan 11

A DOR E O GOSTO

Tudo em volta é dor e pó,
tudo luto e tudo enfado,
tudo vestido de dó,
tudo só do mesmo lado!

Mas venha um truc doloroso
um traumatismo violento
que sacuda este tormento
em movimentos de gozo.

Quando a dor em lago existe
e a nossa vida cativa
do mesmo lago persiste,
não vale a pena ser esquiva,

Basta apenas um motivo
que movimente esse lago
e o movimento é afago
duma dor em que me vivo.

Duma dor em que me exalto
de soberba e de ternura,
onanística ventura
de pôr as chagas ao alto!

Saborear o que passa
na fieira dos seus dedos
é dominar os enredos
com que se faz a desgraça.

Ninguém fuja à sua dor,
que é fazer-se perseguido,
que é considerar indivíduo
o que era apenas... calor!

Mário Saa
publicado por RAA às 19:26 | comentar | favorito
28
Jan 11

QUESTÕES DE TEMPO

1

O que representava esse arrepio
que com a noite vinha e me fazia
duvidar que pudesse em outro tempo

voltar a ver o corpo da alegria?
Todo o tempo é composto por enigmas
toda a mudança que eles significam

desaguará em perda esse o sentido
da noite que responde agora na
floresta do passado às aves fugitivas

Gastão Cruz
publicado por RAA às 23:54 | comentar | favorito

CASA DE BONECAS

Viam-se do quarto n.º 405
e pareciam,
à primeira vista, gente.
Mas não; eram apenas bonecas
a tomar diariamente chá
numa mesa colorida pelo desespero.

A única pessoa, já velha, era
a que veio pôr a secar
umas largas cuecas brancas,
em perfeito contraste
com o tule rosado das bonecas.

Manuel de Freitas
publicado por RAA às 16:58 | comentar | ver comentários (2) | favorito
28
Jan 11

...

Ela, quando jovem
teve um homem
um jazzbandista marreco
dirigia uma orquestra e tocava bateria
intrumento onde se escrevia, no bombo, (Chick Webb) Jazzband.
Ela só mais tarde passou a Ella.
Ele morreu antes de Ella.

José Duarte
publicado por RAA às 14:13 | comentar | favorito