02
Jan 11

MELANCOLIA

não tentes os meus cuidados. procura nestes gestos
o obscuro caudal das renúncias. sabes, como eu sei
os limites de sombra desta casa.
sobre a mesa dormem pêssegos incendiados
e um vago olor a ternura desvanece-se sob o coração.
ficaram longe as marés do nosso olhar
enquanto cresciam as arribas da melancolia.
que importam as planícies movediças da memória
o alvoroço dos olhos com que nos descobrimos
e os sóis com que nos cegámos de aventuras?
que importa agora a água de tanta sede comum
o frescor da efémera alegria?
não me procures na hora da deserção, enquanto
vou roubar ao tempo os derradeiros portos
últimos passos, uma brisa de gaivotas e de névoa

João Candeias
publicado por RAA às 23:43 | comentar | favorito
02
Jan 11

E TODOS OS PÁSSAROS

     Eles não tinham escrito os poemas que eu esperava escrever. Mas os livros deles, quem sabe se não faziam nas montras das livrarias o eco da minha própria voz? Assim iam e eram os tempos: fazer-se ouvir dava-nos por momentos, e às vezes durante a vida inteira,  a ilusão de existir, de ter desempenhado um papel e ter encontrado a verdade, um destino. O país era o modelo perfeito e surpreendente dos vícios da raça: ambição, heroísmo, despique. Uma ausência dolorosa e mesquinha por detrás das palavras, e todos os pássaros voavam apenas para serem vistos a cortar com agilidade o azul do céu. Como eu tinha horror a vir a ser pó nesta terra calcinada pelo sol, e lamentava ter nascido longe da modéstia de um destino tranquilo, noutro tempo, à sombra, no meio de outros homens.

João Camilo
publicado por RAA às 21:09 | comentar | ver comentários (2) | favorito