07
Jan 11

LUGAR DO SOL

Há um lugar na mesa onde a luz
Abdicou do seu ofício.
Já foi o sol
e do trigo esse lugar -- agora
por mais que escutes, não voltarás
a ouvir a voz de quem,
há muitos anos, era a delicadeza
da terra a falar: «Não sujes
a toalha»; «Não comes a maçã?»
Também já não há quem se debruce
Na janela para sentir
O corpo atravessado pela manhã.
Talvez só um ou outro verso
consiga juntar no seu ritmo
luz, voz, maçã.

Eugénio de Andrade
publicado por RAA às 17:10 | comentar | favorito

LA CIGALE

L'air est si chaud que la cigale,
La pauvre cigale frugale
Qui se régale des chansons,
Ne fait plus entendre les sons
De sa chansonette inégale;
Et, rêvant qu'elle agite encor
Ses petits tambourins de fée,
Sur l'écorce des pins, chaufée,
Où pleure une résine d'or,
Ivre de soleil, elle dort.

Paul Arène
publicado por RAA às 15:42 | comentar | favorito
07
Jan 11

AS PÁGINAS DOS ROMANCES

Arriscávamos o salto mortal
voando com uma venda nos olhos
dos andaimes para o monte de areia da póvoa.
As obras da escola eram a nossa perdição:

as fasquias de alumínio, o ondulado de luzalite
das coberturas, o entulho, o ressalto
exacto do encaixe das tijoleiras, o pó quase de talco
dos sacos de cimento da cimpor. Nos sábados

à tarde erguíamos muros no combarro com tijolo
de quinze, marcávamos com estacas de pinho
o perímetro exterior do pavilhão, ligávamos a betoneira
a olhar em sobressalto os movimentos oscilatórios

do balde. Penso que era assim. Às vezes
pergunto o que fica dos livros, o que pertence
e não pertence à literatura, o que acrescentaram
à nossa vida as páginas dos romances.

José Carlos Barros 
publicado por RAA às 14:34 | comentar | favorito