20
Jan 11

AS PALAVRAS MANSAS

o limiar do sonho traz as palavras mansas
como a argila breve salivada e branda.
levemente sob a timidez do bosque d'água
o amor irrompe do limiar da infância.

mas nós estamos sós junto à fonte da memória.
as crianças cantam como mel sobre as ramagens
na recordação do fogo mágico da aurora
a canção do mundo transversal que quis ser puro

como um ninho de argila salivada e branda

João Candeias
publicado por RAA às 23:58 | comentar | favorito

SONETOS DE OLINDA - IV

Mar de palpitações onde navego
desde que a meu cismar se dera um dia
e seus fardos de azul e de poesia
pesam na voz que a meus silêncios nego

por tê-la dado a um pássaro e por cego
não ter visto que o pássaro morria
sem que antes lhe gravasse a melodia
nesta concha interior que em mim carrego

e enche-me o coração de igual tumulto
ao desse esbravejar de um deus sepulto
a erguer-se em ondas e a despedaçar-se

para mais belo erguer-se novamente
como alguém que pudesse a um sonho ardente
liberto se sentir no próprio cárcere.

Afonso Félix de Sousa
publicado por RAA às 17:47 | comentar | favorito

INSCRIPTION pour une fontaine

Vois-tu, passant, couler cette onde
Et s'écouler incontinent?
Ainsi fuit la gloire du monde,
Et rien que Dieu n'est permanent.

Agrippa d'Aubigné
publicado por RAA às 14:19 | comentar | ver comentários (2) | favorito
20
Jan 11

TEORIA DA NARRATIVA FAMILIAR

Naquele tempo o meu pai trabalhava
por turnos
como herói socialista
no sector siderúrgico
e dormia com a minha mãe.
A minha mãe esfregava
a sarja encardida:
a água ficava da cor da ferrugem.
Havia, por perto, um cão
esgalgado,
sempre a rondar.
Depois, a minha irmã nasceu
e eu fui obrigado
a rever a minha mitologia privada do caos.
Entre uma coisa e outra
aprendi a mentir.
E isso, não sei se sabem, mudou tudo.

Luís Filipe Parrado
publicado por RAA às 10:44 | comentar | favorito