13
Fev 11

CALÇADA DOS MESTRES

Três velhas e eu,
na última taberna de Campolide.
Falavam de ir "levantar" os maridos,
o que deles resta.
Mas não estão "capazes":
dois anos debaixo da terra
nem sempre é o bastante.
"O meu João era mais forte do que
o teu" -- trabalho de vermes,
apenas. Também "por esta altura
morreu o Joaquim Sapateiro",
recordam. Como se já só
da morte vivessem
(o que não foge demasiado
à verdade geral:
alimentos em preparação -- ou cinzas).

Há quem tenha estado
dez anos debaixo da terra,
antes de poder ser "levantado"
-- e há quem nunca tenha estado vivo,
acrescenta o autor destes versos,
condensando a tarde numa garrafa vazia.

Estão a perceber agora
por que é que eu gosto tanto
de tabernas?
(Não respondam; o poema termina aqui,
porque a Dona Joana tem de ir ao oculista.)

Manuel de Freitas 
publicado por RAA às 23:49 | comentar | ver comentários (3) | favorito
13
Fev 11

SANTO ANTÓNIO DOS CAVALEIROS

Um pequeno cais sem pedra nem saudade
Acaba num jardim de barcos a fingir
Num horizonte de fumo e de castanhas
Entre anúncios, collants e supermercados

(Não vinha ninguém nesta camioneta)
Minutos pesados se passaram entretanto
O néon dos anúncios do prédio em frente
Acorda-nos dum sonho já pouco perfeito

Outras camionetas vão encher o largo
Alguns indianos, chineses sem palavras
Misturam-se com moçambicanos perdidos
No metro que os engole tão pontualmente

E passam por nós casais quase exemplares
Cada um com um filho que dorme ao colo
E cada filho com o sono mais pesado
(Sem outra mão para os sacos de plástico)

Jornais velhos com notícias já perdidas
Chegam devagar aos pés de quem espera
O frio e o vento não perdoam no cais
E (sabemos) não é ainda esta a camioneta

José do Carmo Francisco
publicado por RAA às 13:47 | comentar | favorito