17
Mai 11

O MONHÉ DAS COBRAS

Manhã gloriosa, imobilizada na distância,
no extremo da caixa de areia branca
onde, agachado, anónimo e ascético,
envolto em alvos panos e silêncio,
está. O pudvém cobre-lhe o escroto

e sobraça-lhe as pernas magras e finas
de esquálido aracnídeo. No topo o turbante
e a barba anciã oscilam na brisa matinal.
Principia, então, a enfeitiçar o dia,
com exactos gestos rituais. Ergue-se,

por fim, plangente e implorativo,
o sinuoso som, para revelar, em
lentos arabescos, os assombros guardados
no sábio cesto de vime. Obedientes,
as cobras capelo encenam, à maneira,

seu acto, a coberto da enganosa pintura.
Húmidas, dardejam ao sol, rápidas,
coruscantes e fatais línguas bífidas.
Nós, meninos, paralisados de medo
e espanto. A esteira irá perder-se

no longe da areia, gasto tapete voador
voando imóvel no céu profundo
da imaginação. Privilegiado observador
desta vigília acesa debruando já,
de mansinho, as margens do sono.


Rui Knopfli
publicado por RAA às 22:44 | comentar | favorito

ADUBO

O talento dos autores que estudamos é uma espécie de adubo que nos faz medrar. A nossa pequena notoriedade ganha-se à sua custa.
publicado por RAA às 17:24 | comentar | ver comentários (2) | favorito

ROSA MÍSTICA

               Hour of love.
               Byron. Parisina

Do pôr-do-sol àquela luz sagrada,
Eu perdia-me... ó hora doce e breve!...
Meu peito junto ao seu colo de neve,
-- Numa contemplação vaga e elevada

Nossas almas s'erguiam, como deve
Erguer-se uma alma à Luz afortunada.
Do mar se ouvia a grande voz chorada.
-- Palpitavam as pombas no ar leve.

Eu então perguntei-lhe, baixo e brando:
Em que mundo de luz é que caminhas?
Que torre está tua alma arquitectando?...

-- Ela, travando as suas mãos nas minhas,
Me disse, ingénua, então: -- Estou cismando
No que dirão, no ar, as andorinhas.

Gomes Leal
publicado por RAA às 17:23 | comentar | favorito

UMA DE NOME EMÍLIA

uma mulher nasceu em Trás-os-Montes
e veio dar-me à luz cá no Brasil
dela só soube o nome (e era Emília)
antes que eu mais soubesse, ela partiu.

deixou porém vagando no meu sangue
caravelas herdadas a Cabral
que inflando suas velas invisíveis
me pedem mar... distâncias... Portugal.

trazem-me estranhas, vagas nostalgias
daquilo que eu não vi nem foi sonhado,
de gentes que eu amei sem tê-las visto,
de campos que eu cruzei sem ter cruzado.

leva-me às vezes com tal força o vento
na direcção do mar, daquelas terras,
que em pensamento parto na procura
do que ficou em mim além das serras.

caminho então por vilas abstractas
em que há ruas e casas de neblina
e espero ver um vulto que me chame
detrás de alguma porta, de uma esquina.

mas nada vejo dessa sombra antiga
que o deslizar do tempo consumiu,
nada que lembre certa transmontana
que teve certo filho no Brasil.

Mário de Oliveira
publicado por RAA às 16:12 | comentar | favorito
17
Mai 11

TEUS OLHOS

Teus olhos, Honorine, cruzaram oceanos,
longamente tristes, sequiosos,
como flor aberta nas sombras em busca do sol.
Vieram com o vento e com as ondas
através dos campos e bosques da beira-mar.
Vieram até mim, estudante triste,
Dum país do sul.

Ruy Cinatti
publicado por RAA às 11:45 | comentar | favorito