30
Jun 11

AO LONGE, A VIDA

Agora eu sou a margem indiferente deste rio,
deste rio da Vida, que passa sem me ver...
Agora eu sou um desejo do esperado Fim,
um sonho que ficou por despertar,
uma lágrima apenas que jamais tardou
às chamadas da minha alma doente.
Eu sou o tédio,
O que ambicionou tudo o que não veio...
Eu sou o tédio, eu sou a morte... eu sou o frio...
Alberto de Lacerda
publicado por RAA às 14:29 | comentar | favorito
30
Jun 11

TROVAS A UMA CATIVA

Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que para meus olhos
Fosse mais formosa.

Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas,
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.

Uma graça viva,
Que neles lhe mora,
Para ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.

Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbara não.

Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela enfim descansa
Toda a minha pena.
Esta é a minha cativa
Que me tem cativo,
E, pois nela vivo,
É força que viva.

Luís de Camões 
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29
Jun 11
29
Jun 11

CANÇÃO

A nuvem que passa,
O sorriso que flutua,
Tudo
Quanto intensamente vive, --
O que é eterno e o que é frágil,
-- Detalhe de arquitectura,
Pedaço de céu,
Tudo,
Tem no espelho o mesmo peso,
O mesmo valor,
E a mesma realidade.

Anoitece nos meus olhos.

-- Se vens falar-me de amor,
vê lá bem se isso é verdade.

António Botto
publicado por RAA às 18:42 | comentar | favorito
28
Jun 11

MEIO-DIA EM BROCOIÓ

Ante a glória, a esplender, tudo se obumbra!
Multiacende-se a sobremaravilha!
O radiecer frenético esfervilha!
A potência vulcânica deslumbra.

Ouro! Sideração! Não há penumbra!
O amarelo das árvores rebrilha!
A água se achamalota e rebrasilha!
O crisólito côncavo relumbra!

Plenitude! Loureja o meio-dia!
Luciferando, a fúria nos ofusca!
Treme a Terra, a eferver, fulge o flavor!

Apoteose! Ambreia-se a alegria!
A vida canta, a comburir corusca,
ensolarando a Guanabara em flor!

Martins Fontes
publicado por RAA às 14:27 | comentar | favorito
28
Jun 11

CABECINA EN BRONCE D'UNA DIOSA

Bronce head of  a goddess. From
Sadagh, nort-east Turkey.
British Museum

Anda nos tos güeyos la nueche
-- la primer nueche que vieron
los díes grandes de la infancia,
la nueche primordial
de la que faló Hölderlin,
la sencia escuro de la materia.

Falaré tamién del to pelo:
claro como les campes de trigo
de Tracia, digo de Paniceiros,
mesto como la lluz de la lluna
cuando ye marzo y tamos
fuera casa,
con diecinueve años
malapenes recién cumplíos.

Hai una curva de lluz nos tos llabios,
un rictus sensual y distante:
la barbadiella encesa y nidia,
la nariz caricol de llume
na nuche ciego.

Too ello delata les manes, l'artista.
Los güeyos que vieron Troya y la ceniza
nes altes palabres del poeta.

Xuan Bello
publicado por RAA às 11:42 | comentar | favorito
27
Jun 11

LUZ RECENTE

Respiras com cautela a luz
recente.
Deve ter acordado: canta.
Anos e anos a luz adormecida
no fundo da pupila.
Já nem te lembravas
que fora assim tão jovem
e tinha
o nome da alegria.
Agora canta. Canta
em surdina.

Eugénio de Andrade
publicado por RAA às 23:53 | comentar | favorito

...

Quen a sesta quiser dormir,
conselhá-lo-ei a razon:
tanto que jante, pense d'ir
à cozinha do infançon:
e tal cozinha lh' achará,
que tan fria casa non á
na oste, de quantas i son.

Ainda vos en mais direi
eu, que um dia i dormi:
tan bõa sesta nan levei,
des aquel di' an que naci,
como dormir en tal logar,
u nunca Deus quis mosca dar
ena mas fria ren que vi.

E vedes que ben se guisou
de fria cozinha teer
o infançon, ca non mandou
des ogan' i fogo acender;
e, se vinho gaar d'alguen,
ali lho esfriarán ben,
se o frio quiser bever.

Pero da Ponte
publicado por RAA às 14:27 | comentar | favorito
27
Jun 11

...

Sou Ibn 'Ammar: a minha glória
Não há quem a possa ignorar
A não ser tolos, dos quais não reza a história,
E que nem astros conseguem enxergar.

Se o meu Tempo me despreza
Não é isso motivo para espanto
Notas em livros é o que mais se preza
E nas margens se escrevem, no entanto.

Ibn 'Ammar

(Adalberto Alves)
publicado por RAA às 11:09 | comentar | favorito
26
Jun 11
26
Jun 11

Fábulas

autor: Curvo Semedo (Montemor-o-Novo, 1766 - Lisboa, 1838)
título: Fábulas
prefácio: H. Zeferino de Albuquerque
colecção: Livros de Bolso Europa-América #395
editora: Publicações Europa-América
local: Mem Martins
ano: s. d.
págs.: 167
dimensões: 17,9x11,4x0,9 cm. (brochado)
impressão: Gráfica Europam, Mira-Sintra
publicado por RAA às 16:57 | comentar | favorito
25
Jun 11
25
Jun 11

...

Eu pertenço à sonolência deste azul,
à nudez das estátuas de areia
povoando a solidão nocturna das praias.
Fui com os pescadores e voltei,
volta menino para que os que te amam
não sofram a ansiedade da espera.
Trouxe conchas e peixes de prata,
cachos de estrelas e redes de vento
e mergulhei na água que sabia a óleo
e bebi a aguardente dos náufragos
e acreditei nas histórias da viuvez
das mulheres agachadas nas dunas.
Eu podia ter sido marinheiro,
pescador das pérolas que há no êxtase
da palavra, eu podia ter sido tudo,
mas acabei por desembocar numa baía
com o assombro da infância
a falar-me de sereias e de fadas junto à cama.

José Jorge Letria
publicado por RAA às 21:41 | comentar | favorito (1)