07
Out 11

MANDIMBA METÓNIA VILA CABRAL

Infância triste mas encantada

Em casas grandes mas sombrias

Outras crianças não as havia

Os meus amigos? Dois grandes gatos

A luz e o vento a água a água

 

Se alguém tocava velho e roufenho

O gramofone de manivela

Eu perturbava-me e a quem me via

Com lágriimas que não entendia

 

Havia festas de vez em quando

Eram janelas do paraíso

Lembro os adultos Como eram estranhos

Como eram estranhos e imprevistos

 

Como eu sentia que não sei onde

Um outro reino de festa e luz

Inteiramente me pertencia

E só de longe naquelas casas

Naquela gente que me era fria

Muito por alto se reflectia

 

Vila Cabral, 22-2-63

 

Alberto de Lacerda

publicado por RAA às 14:54 | comentar | favorito
07
Out 11

...

Quando de minhas mágoas a comprida

Maginação aos olhos me adormece.

Em sonhos aquela alma me aparece

Que para mim foi sonho nesta vida.

 

Lá numa soïdade, onde estendida

A vista pelo campo desfalece,

Corro para ela; e ela então parece

Que mais de mim se alonga, compelida.

 

Brado: -- Não me fujais, sombra benina!

Ela, os olhos em mim cum brando pejo,

Como quem diz que já não pode ser,

 

Torna-me a fugir; e eu, gritando: -- Dina...,

Antes que diga mene, acordo, e vejo

Que nem um breve engano posso ter.

 

Luís de Camões

publicado por RAA às 11:13 | comentar | favorito
06
Out 11
06
Out 11

...

A saudade vindoira espero-a, pois, agora

Que acho o presente em rosas brancas desfolhado,

Mais um ano, dois, três, e hoje será outrora

E todo este fulgor é a sombra do passado.

 

Chorarei, e não mais hei-de rever a aurora

Que surgiu dentro em mim como um sonho doirado.

Foi este o dia, em tal distante, em tal hora,

E revejo-me só, sem ninguém a meu lado.

 

Mas depois, uma nova ilusão erradia

Vem buscar-me no grande ermo em que estou: floresce

De novo o lírio azul na floresta sombria.

 

Um cisne, erguendo o colo ebúrneo, esbelto o porte

Virginal, exaltado ao céu, canta uma prece...

Pobre alma! o sonho foi-se, e afinal surge a morte.

 

A dor imaterial que magoa o teu riso,

Ténue, pairando à flor dos lábios, tão de leve,

Faz-me sempre pensar em tudo que é indeciso:

Luares, pores-de-sol, cousas que morrem breve.

 

Alphonso de Guimaraens,

publicado por RAA às 14:43 | comentar | favorito
05
Out 11
05
Out 11

PARTIDA PARA O CONTRATO

O rosto retrata a alma

amarfanhada pelo sofrimento

 

Nesta hora de pranto

vespertina e ensanguentada

Manuel

o seu amor

partiu para S. Tomé

para lá do mar

 

Até quando?

 

Além no horizonte repentinos

o sol e o barco

se afogam

no mar

escurecendo

o céu escurecendo a terra

e a alma da mulher

 

Não há luz

não há estrelas no céu escuro

Tudo na terra é sombra

 

Não há luz

não há norte na alma da mulher

 

Negrura

Só negrura...

 

Agostinho Neto

publicado por RAA às 23:35 | comentar | favorito
04
Out 11
04
Out 11

CON HOLDERLIN EN GRAÇA

Para evocar a rosa da loucura

Levo sempre comigo na carteira

Uns versos sen lembranzas e unha escura

Sombra á beira de min por compañeira.

 

O mal da lucidez xa no ten cura,

Os soños van á nada preguiceira,

Pero a flor da inocencia aínda perdura

No medio dos fragmentos, da poeira

 

Do mundo, baixo as trabes inseguras

Do universo...

                     Unha folla voandeira

Pode pautar a música futura,

Fatal, incerta, estraña, verdadeira.

 

Penso isto en Lisboa, nun tranvía,

Dando cabo a esta inmóbil travesía.

 

 

Ramiro Fonte

 

publicado por RAA às 14:51 | comentar | favorito