31
Jul 12
31
Jul 12

UM ENXAME DE MOSQUITOS

Miríades em poalha rebrilhante

Se agrupam ávidos e avançam

Em círculos trémulos

Desenfreadamente divertidos

Uma hora e logo sumidos

No delírio se esgotam zubinando

De pura alegria da morte.

 

Impérios decadentes e arruinados,

Tronos dourados desaparecidos

Na voragem da noite e da lenda, sem deixar traço,

Jamais conheçeram dança tão frenética.

 

Hermann Hesse

(Jorge de Sena)

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29
Jul 12
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Jul 12

FRAGMENTO

O ar da tarde esperava por que o fosse

o voo que antes de ser será perdido

e o primeiro pássaro ergue-se de novo

em busca do voo do ar por que foi sido

 

Miguel Serras Pereira

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27
Jul 12
27
Jul 12

TOTI CADABRA

(Vida e morte severina)

 

        «Toti Cadabra», nome exacto para um

        ser marginal.

        Estes versos são o teu epitáfio;

        depois deles nunca mais falarão de ti.

 

No enterro de Toti

nem padre nem gente

na campa de Toti

nem flor de finado

 

Na campa-buraco

teu corpo mirrado

já eras da larva

bem antes da cova

 

Toti Cadabra

de vida macabra

já eras cadáver

bem antes da morte

 

Bem antes da morte

já eras cadáver

Toti Cadabra

de vida sinistra

 

O grogue e a fome

são traças são bichos

já eras da larva

bem antes da cova

 

No enterro de Toti

nem padre nem gente

na campa de Toti

nem flor de finado.

 

Arménio Vieira

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24
Jul 12
24
Jul 12

POEMA DA VOZ QUE ESCUTA

Chama-me lá em baixo.

São as coisas que não poderam decorar-me:

As que ficaram a mirar-me longamente

E não acreditaram;

As que sem coração, no relâmpago do grito,

Não poderam colher-me.

Chamam-me lá em baixo,

Quase ao nível do mar, quase à beira do mar,

Onde a multidão formiga

Sem saber nadar.

Chamam-me lá em baixo

Onde tudo é vigoroso e opaco pelo dia adiante

E transparente e desgraçado e vil

Quando a noite vem, criança distraída,

Que debilmente apaga os traços brancos

Deste quadro negro -- a Vida.

Chamam-me lá em baixo:

Voz de coisas, voz de luta.

É uma voz que estala e mansamente cala

E me escuta.

 

Março de 1939

 

Políbio Gomes dos Santos

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23
Jul 12
23
Jul 12

"És tão lesto a escutar"

És tão lesto a escutar

Quem para as festas te convida...

Não vês cãs a segredar

Que a morte te leva a vida?

 

Deu-te Deus sabedoria,

Porque ignoras do Destino

Cego e surdo como um muro?

És e foste, isso é o Futuro.

 

Das esferas a harmonia

Findará em desatino:

Morrerão o Sol e a Lua

E a própria terra que é tua.

 

E na choça da carência

Ou na mansão da cidade

Todos perdem na verdade

Sua fugaz existência.

 

Ibn Sara

 

(Adalberto Alves)

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22
Jul 12
22
Jul 12

CANÇÃO DO ACASO

Hoje que os passos fugiram,

Sonoros, da terra inteira,

Que os nossos passos na poeira

Das eras mortas expiram; 

 

Que aguarda, em vão, penitentes

Algum deserto muslim:

-- Mesmo no meio das gentes

Ardem desertos sem fim... --

 

Ou a montanha salutar

O Enviado que for

Lá, da planície, incubar

Novo Verbo redentor.

 

Hoje que o homem, sem temores,

Há muito os deuses matou,

Só tu avivas as flores

Que o cepticismo gelou.

 

Vais comigo, e em tudo poisa

A tua asa, em redor:

Mudas de coisa p'ra coisa

Como as abelhas de flor.

 

A vida, sem o saber,

Abre-te as velas bem alto,

Aonde possas de salto,

Vento do acaso, bater.

 

Acaso -- o perigo vencendo,

Ou ao prazer sobrevindo --

De Ícaro as asas batendo,

Ou Dafne a Apolo fugindo...

 

Alexandre de Aragão

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19
Jul 12
19
Jul 12

PRELÚDIO

A minha Poesia é uma árvore cheia de frutos

que um sol de tragédia amadurece;

mas eu não os arranco nem procuro:

-- o meu sol de tragédia aquece, aquece,

e o fruto cai de maduro.

 

No resto, sou empregado de escritório

que não procura desvendar abismos,

e passa o dia (glorioso ou inglório)

a somar algarismos...

 

A minha Poesia é uma árvore cheia de frutos

que um sol de tragédia amadurece;

 

mas eu não os arranco nem procuro:

-- sei a miséria da estrada percorrida;

o meu sol de tragédia aquece, aquece,

 

-- e o fruto cai de maduro

no chão da minha vida.

 

Sidónio Muralha

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18
Jul 12
18
Jul 12

INTIMIDADE

Fogueira acesa

num imenso lugar comum.

É quase de noite.

 

Luís Serra

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17
Jul 12
17
Jul 12

ALDEIA

Nove casas,

duas ruas,

ao meio das ruas

um largo,

ao meio do largo

um poço de água fria.

 

Tudo isto tão parado

e o céu tão baixo

que quando alguém grita para longe

um nome familiar

se assustam pombos bravos

e acordam ecos no descampado.

 

Manuel da Fonseca

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16
Jul 12
16
Jul 12

NO ANIVERSÁRIO DA PAZ

Musa da guerra, que alegrias cantas?

Quem ergue e agita as triunfantes palmas,

Se um espasmo de dor prende as gargantas

E a treva ensombra os corações e as almas?

 

Ainda a vitória não desceu à terra...

Ainda, ainda é um falso nome...

Mas se deliu um torvo espectro -- a guerra,

Aumentou logo o velho espectro -- a fome.

 

Amorteceu o pávido estampido

Das vozes dos canhões, repercutentes,

Mas enche o mundo inteiro outro ruído:

-- Milhões de bocas a ranger os dentes!

 

Há nos tratados expressões de paz,

Mas interroga e brada a multidão:

Que bem nos veio dela? O que nos traz,

Se não nos deu contentamento e pão?

 

Augusto Gil

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