CANÇÃO DO ACASO
Hoje que os passos fugiram,
Sonoros, da terra inteira,
Que os nossos passos na poeira
Das eras mortas expiram;
Que aguarda, em vão, penitentes
Algum deserto muslim:
-- Mesmo no meio das gentes
Ardem desertos sem fim... --
Ou a montanha salutar
O Enviado que for
Lá, da planície, incubar
Novo Verbo redentor.
Hoje que o homem, sem temores,
Há muito os deuses matou,
Só tu avivas as flores
Que o cepticismo gelou.
Vais comigo, e em tudo poisa
A tua asa, em redor:
Mudas de coisa p'ra coisa
Como as abelhas de flor.
A vida, sem o saber,
Abre-te as velas bem alto,
Aonde possas de salto,
Vento do acaso, bater.
Acaso -- o perigo vencendo,
Ou ao prazer sobrevindo --
De Ícaro as asas batendo,
Ou Dafne a Apolo fugindo...
Alexandre de Aragão