30
Mar 13
30
Mar 13

CRISTO NA CRUZ

Cristo na cruz. Os pés tocam a terra.

Os três madeiros são de igual altura.

Cristo não está no do meio. É o terceiro.

A negra barba pende-lhe sobre o peito.

O rosto não é o rosto das gravuras.

É áspero e judeu. Não o vejo e continuarei

a procurá-lo até ao dia derradeiro

dos meus passos pela terra.

O homem alquebrado sofre e cala.

A coroa de espinhos fere-o.

Não o alcança a mofa da plebe

que viu a sua agonia tantas vezes.

A sua ou a de outro. Dá o mesmo.

Cristo na cruz. Desordenadamente

pensa no reino que talvez o espere,

pensa numa mulher que não foi sua.

Não lhe é dado ver a teologia,

a indecifrável Trindade, os gnósticos,

as catedrais, a navalha de Occam,

a púrpura, a mitra, a liturgia,

a conversão de Gudrun pela espada,

a Inquisição, o sangue dos mártires,

as atrozes Cruzadas, Joana d'Arc,

o Vaticano que abençoa exércitos.

Sabe que não é um deus e que é um homem

que morre com o dia. Não se incomoda.

Incomoda-o o duro ferro dos cravos.

Não é um romano. Não é um grego. Geme.

Deixou-nos esplêndidas metáforas

e uma doutrina do perdão que pode

anular o passado. (Esta frase

escreveu-a um irlandês numa prisão.)

A alma procura o fim, apressada.

Escureceu um pouco. Já morreu.

Anda uma mosca pela carne quieta.

De que me pode servir que aquele homem

tenha sofrido, se sofro agora?

 

Kyoto, 1984


Jorge Luis Borges, os Conjurados


(trad. Maria da Piedade M. Ferreira

e Salvato Teles de Meneses)

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27
Mar 13
27
Mar 13

PESQUISA UTILITÁRIA

De cem favoritos reais

noventa e seis foram guilhotinados.

É preciso conversar atentamente

com os quatro que sobraram...

 

Carlos Saldanha

in Heloisa Buarque de Hollanda, 26 Poetas Hoje

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26
Mar 13
26
Mar 13

POUR RIRE EN SOCIETÉ

Le dompteur a mis sa tête

dans la gueule du lion

moi

j'ai mis seulement deux doigts

dans le gosier du Beau Monde

Et il n'a pas eu le temps

de me mordre

Tout simplement

il a vomit en hurlant

un peu de cette bile d'or

à laquelle il tient tant

Pour réussir ce tour

utile et amusant

Se laver les doigts

Soigneusement

dans une pinte de bon sang

 

Chacun son cirque

 

Jacques Prévert


PARA RIR EM SOCIEDADE


O domador meteu a cabeça

na boca do leão

eu cá

meti só dois dedos

na goela da Alta Roda

e ela não teve tempo

de morder

Muito simplesmente 

vomitou aos urros

um pouco daquele fel dourado

em que faz tanto gosto

Para fazer esta habilidade

útil e divertida

lavem-se os dedos

cuidadosamente

em três quartilhos de bom sangue


A cada um seu circo


(trad. Pedro tamen)

O Escritor #11/12

publicado por RAA às 00:28 | comentar | favorito
22
Mar 13
22
Mar 13

-trinta dinheiros

faço parte de um todo

que não escreve em vão

talvez seja a única certeza que tenho

sou o verso de um poema convocado

pela tentação dos deuses

a um encontro final

a outra parte submerge

algures no universo das folhas caducas

onde cada um de nós é a pata de uma aranha secular

fazendo da palavra a teia

onde se inserem as constelações/poemas

as páginas/sonhos

as armas/revoluções

os cães democratas e

o riso abaerto das noites

capazes de passar incólumes

à memória absurda dos especialistas

de portas escancaradas à compra

 

trinta dinheiros - é comprar!

 

vomito

 

somos

-os alquimistas que se ousam

em pontos finais e vírgulas

em lombadas de livros

em palavras e páginas azuis e

 

cujas gargalhadas não constam de acordos

 

-crianças velhas que

exigem palavras novas ou

loucos insurrectos prenhes de poemas virgens

 

Gabriela Rocha Martins

Sulscrito #3

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21
Mar 13
21
Mar 13

FOTOGRAFIA DOS MEUS AVÓS

Ela tem o corpo levemente inclinado

acompanhando, também com a cabeça,

a bela doçura do olhar que a tarde continua

e que mistura, ao rumor da alegria,

para cujo lado o rosto se inclina

a sombra já como conjura de uma

quase visível nostalgia;

nele há um pouco mais de desajuste,

de susto, corpo grande e no entanto pueril

no fruste meneio das mão atrapalhadas,

aos atoleiros da vida desatreito, cerrado,

viverá entre caçadas e cães

e morrerá na Ria.

 

Maria Andresen,

O Escritor #22

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14
Mar 13
14
Mar 13

ZÉ JEITOSO

Quando a noite cai, o Zé Jeitoso começa

uma história simples, uma história qualquer,

com palavras de embalar

para que o mar

adormeça,

-- o mar, diverso como um corpo de mulher.

 

Zé Jeitoso conta -- e os colegas a ouvi-lo,

sentados no chão, deitados no chão,

pensam que para contar aquilo

Zé Jeitoso traz o mar no coração...

 

Zé Jeitoso fala de longínquos portos,

de perrices fantásticas do mar,

e julga que os companheiros mortos

passeiam no céu, em noites de luar...

 

Zé Jeitoso fala... E nas palavras de embalar

os companheiros ficam presos...

O mar adormece... E, por cima do mar,

as estrelas parecem cachimbos acesos...

 

Sidónio Muralha,

Passagem de Nível

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12
Mar 13
12
Mar 13

ESTIO

Horizonte

todo de roda

caiado de sol.

Ao meio

do cerro gretado,

esguia cabeça de cobra

olha assobios de lume

sobre espigas amarelas...

(...Campaniços degredados

na vastidão das seara

sonham bilhas de água fria!...)

 

Manuel da Fonseca,

Planície

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11
Mar 13
11
Mar 13

«A ILHA DOS NAVIOS PERDIDOS»

Aqui é a ilha dos navios perdidos,

dos navios abalroados, afundados

nos naufrágios...

Esta é a ilha perdida nos mapas,

perdida no mar dos sargaços;

este é o mar das Tormentas,

das tormentas desta vida,

onde há só tempestades e agoiros;

o céu

é esta noite negra sem limites

onde não vive um astro, uma nuvem ou uma asa;

a terra é esta,

os cascos oscilantes

dos mil navios perdidos:

Naus da Índia,

barcos piratas de moiros,

fragatas e caravelas,

navios dos Corte-Reais

onde jazem insepultos

os heróis mais verdadeiros

e os sonhos mais colossais.

-- Nos mastros desmantelados

flutuam,

rotos e desbotados,

estandartes imperiais

e nos porões arrombados,

nos cofres de segredos inúteis,

dormem os tesoiros arrancados

a todos os orientes.

 

Não há grandeza que baste

quando a desgraça é tamanha!...

 

Joaquim Namorado,

Aviso à Navegação

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08
Mar 13
08
Mar 13

OS HOMENS DA MINHA RUA DE CASAS DE MADEIRA

Os homens da minha rua de casas de madeira,

telhadas de folha velha,

usam sempre o chapéu atirado para os olhos.

Deslizam em silêncio, embuçados e tristes,

como quem vem de longe, como quem vai para longe...

A minha rua é longa,

com mil e uma pequeninas poças de água.

E tão estreita

que nunca o sol das ruas largas sem casa de madeira

a pôde visitar.

E os homens contam as poças.

E de olhos nas poças, nas pedras, nas poças,

deslizam em silêncio, embuçados e tristes,

como quem vem de longe, como quem vai para longe...

 

Porque usarão -- porquê? -- sempre o chapéu sobre os olhos,

os homens da minha rua de casas de madeira?

 

Mário Dioníso,

Poemas

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06
Mar 13
06
Mar 13

"Sobe no ar o fumo das chaminés dos casais."

Sobe no ar o fumo das chaminés dos casais.

Entre os braços nus das árvores, sobe, sobe no céu.

Lume na lareira -- carne fumada de inverno,

matança de porco,

arca com grão,

roca com linho -- abençoado Deus!

Mas há os velhos na aldeia a quem o moleiro não fia.

Foram-se os filhos na guerra ou no mar ou num ovário estéril.

Nem braços nem terra: ossos roídos ao frio.

A cinza apagada da lareira é da cor do céu.

 

Fernando Namora

Terra

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