CRISTO NA CRUZ

Cristo na cruz. Os pés tocam a terra.

Os três madeiros são de igual altura.

Cristo não está no do meio. É o terceiro.

A negra barba pende-lhe sobre o peito.

O rosto não é o rosto das gravuras.

É áspero e judeu. Não o vejo e continuarei

a procurá-lo até ao dia derradeiro

dos meus passos pela terra.

O homem alquebrado sofre e cala.

A coroa de espinhos fere-o.

Não o alcança a mofa da plebe

que viu a sua agonia tantas vezes.

A sua ou a de outro. Dá o mesmo.

Cristo na cruz. Desordenadamente

pensa no reino que talvez o espere,

pensa numa mulher que não foi sua.

Não lhe é dado ver a teologia,

a indecifrável Trindade, os gnósticos,

as catedrais, a navalha de Occam,

a púrpura, a mitra, a liturgia,

a conversão de Gudrun pela espada,

a Inquisição, o sangue dos mártires,

as atrozes Cruzadas, Joana d'Arc,

o Vaticano que abençoa exércitos.

Sabe que não é um deus e que é um homem

que morre com o dia. Não se incomoda.

Incomoda-o o duro ferro dos cravos.

Não é um romano. Não é um grego. Geme.

Deixou-nos esplêndidas metáforas

e uma doutrina do perdão que pode

anular o passado. (Esta frase

escreveu-a um irlandês numa prisão.)

A alma procura o fim, apressada.

Escureceu um pouco. Já morreu.

Anda uma mosca pela carne quieta.

De que me pode servir que aquele homem

tenha sofrido, se sofro agora?

 

Kyoto, 1984


Jorge Luis Borges, os Conjurados


(trad. Maria da Piedade M. Ferreira

e Salvato Teles de Meneses)

publicado por RAA às 17:28 | comentar | favorito