30
Abr 13
30
Abr 13

ANJO ENFERMO

Geme no berço, enferma, a criancinha,

Que não fala, não anda e já padece...

Penas assim cruéis por que as merece

Quem mal entrando na existência vinha?!

 

Ó melindroso ser, ó filha minha!

Se os céus ouvissem a paterna prece,

E a mim o teu sofrer passar pudesse,

-- Gozo me fora a dor que te espezinha.

 

Como te aperta a angústia o frágil peito!

E Deus, que tudo vê, não t'a extermina,

Deus que é bom, Deus que é pai, Deus que é perfeito

 

Sim, é pai, mas -- a crença no-lo ensina:

-- Se viu morrer Jesus, quando homem feito,

Nunca teve uma filha pequenina!...

 

Afonso Celso

Evaristo Pontes dos Santos, Antologia Portuguesa e Brasileira

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23
Abr 13
23
Abr 13

BAUDELAIRE SOB O SOL

o sol

(a ser adjetivado:

im-pla-cá-vel)

descorou a capa

de um volume de baudelaire

 

as flores do mal

(descubro)

não resistem à lenta

violência do sol

(sol de boca-de-sertão

que estorrica o solo?)

 

também

quem mandou

colocar a estante

nesta posição:

o que estaria baudelair

(em efígie gráfica)

fazendo no sertão?

 

se as flores do mal

não suportam o sol

(repondez baudelaire)

reisitiriam aos punhais

do óxido e do sal?

 

Carlos Ávila

in Claudio Daniel e Frederico Barbosa,

Na Virada do Século -- Poseia de Invenção no Brasil

publicado por RAA às 13:48 | comentar | favorito
19
Abr 13
19
Abr 13

NO TÚMULO DUMA CRIANÇA

(De Diodoro)

 

Era perfeitamente um passarinho

Esbelto, saltarico e cantador...

 

               Acolhe-a com carinho,

               Recebe-a com amor,

E sê-lhe levezinha, ó terra mãe!

Pois que tão leve ela te foi também...

 

Augusto Gil

in Cabral do Nascimento, Líricas Portuguesas . 2.ª Série

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17
Abr 13
17
Abr 13

AO CAVALO DO CONDE DE SABUGAL, QUE FAZIA GRANDES CURVETAS

Galhardo bruto, teu bizarro alento

Música é nova com que aos olhos cantas,

Pois, na harmonia de cadências tantas,

É clave o freio, é solfa o movimento.

 

Ao compasso da rédea, ao instrumento

Do chão que tocas, quando a vista encantas,

Já baixas grave, e agudo já levantas,

Onde o pisar é som e o andar concento.

 

Cantam teus pés e teu meneio pronto,

Nas fugas, não, nas cláusulas medido,

Mil consonâncias forma em cada ponto.

 

Pois em solfas airosas suspendido,

Ergues em cada quebro um contrato,

Fazes em cada passo um sustenido.

 

Anónimo

(atribuído a Frei António das Chagas)

Maria Ema Tarracha Ferreira, Antologia Literária Comentada --

Época Classica -- Século XVII

publicado por RAA às 13:53 | comentar | favorito
11
Abr 13
11
Abr 13

NEVOEIRO

A névoa chega

Com pés de lã.

 

Pára buscando

Em porto ou cidade

As pistas silentes:

Depois, lá vai.

 

Carl Sandburg

in Jorge de Sena, Poesia do Século XX

publicado por RAA às 19:36 | comentar | favorito
09
Abr 13
09
Abr 13

PAI

O pai quando ressona

é um tractor que lavra o sono

inquieto da casa que se abriu e fechou

para o receber ao fim da tarde

quando chega

de embrulhos nas mãos chaves sacos

de laranjas e jornais atrasados.

De mão na dobra do lençol

o pai promete acordar

para sair de novo ao amanhecer

porque a casa não lhe pertence

talvez a rua talvez um pedaço da rua

que lhe paga os passos e lhe reembolsa a liberdade.

O pai tem nas mãos o exemplo das mãos

e tem histórias da vida debaixo

das unhas cheias de óleo

com que lubrificou meus ossos em crescimento

me fez querer ser homem

dando-me daquelas mãos manchadas

machados

de enfrentar a coragem.

 

Ricardo Ferreira de Almeida

in Viola Delta, vol. XXX

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03
Abr 13
03
Abr 13

"Tão firmes são suas ancas"

Tão firmes são as suas ancas,

de tão suave interior,

que não há no mundo imagens

para dizê-las melhor.

 

Poema sânscrito anónimo

in Jorge de Sena, Poesia de 26 Séculos

publicado por RAA às 19:37 | comentar | ver comentários (2) | favorito
01
Abr 13
01
Abr 13

DESENHOS DA SÉRIE "POETA" (JÚLIO)

Vais pela estrada fora:

os teus passos de vento

percorrem florestas e cidades

como se cada hora,

cada momento,

te desse um novo rosto sem idade.

 

Vais pela estrada sem fim

e o teu olhar tem asas;

transformas-te em palhaço, em arlequim,

e atravessas mil ruas com mil casas

onde há sempre um segredo,

a música do mundo que se entrega

à tua fantasia.

Vá lá, não tenhas medo:

cada palavra cega

é a luz do teu dia.

 

Prossegue o teu caminho:

talvez encontres uma rapariga

que te veja sozinho

e logo te persiga

por essa estrada de quimeras.

Nunca desistas -- mesmo que procures

sem saber onde um sonho antigo,

os milagres que esperas

algures

virão ter contigo.

 

Fernando Pinto do Amaral,

Série Poeta -- Homenagem a Júlio / Saul Dias

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