26
Jul 13

"abril rói a terra por dentro"

Leiria -- 6 h. da manhã ou o veneno da ausência

 

abril rói a terra por dentro

e sobre a face das casas

areia ou sal

-- instrumento antigo de ódio

se dissolve no corpo vertical

da cidade

 

a cidade é baça é um pequeno fruto

de abril ou

ferrugem a lamber os ombros dos muros

junto à estrada

 

António Manuel Lopes Dias,

País Ignorado

in Manuel Ferreira, No Reino de Caliban II

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26
Jul 13

CHAMARAM-ME CIGANO

Chamaram-me um dia

Cigano e maltês

Menino, não és boa rês

Abri uma cova

Na terra mais funda

Fiz dela

A minha sepultura

Entrei numa gruta

Matei um tritão

Mas tive

O diabo na mão

 

Havia um comboio

Já pronto a largar

E vi

O diabo a tentar

Pedi-lhe um cruzado

Fiquei logo ali

Num leito

De penas dormi

Puseram-me a ferros

Soltaram-me o cão

Mas tive o diabo na mão

 

Voltei de charola

De cilha e arnez

Amigo, vem cá

Outra vez

Subi uma escada

Ganhei dinheirama

Senhor D. Fulano Marquês

Perdi na roleta

Ganhei no gamão

Mas tive

O diabo na mão

 

Ao dar uma volta

Caí do lancil

E veio

O diabo a ganir

Nadavam piranhas

Na lagoa escura

Tamanhas

Que tal nunca vi

Limpei a viseira

Peguei no arpão

Mas tive

O diabo na mão

 

José Afonso

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25
Jul 13

UM DESENHO DE JÚLIO

     São Pequenos para nós os jardins desta pequena cidade, com suas ruas estreitas, sua igrejinha envergonhada, e a janela em que me debruço todas as tardes à tua espera. Por isso, às vezes, o amor é tão difícil para nós.

     Mas quando passas devagar à minha porta, a brisa e o sol ganham poderes. E com a flor que dos dedos te nasce pela tarde, sobes então por dentro de mim -- e no ar ficas suspensa à minha espera.

 

     E ninguém sabe, ninguém vê -- é a nossa hora.

 

10/8/2000

 

João Pedro Mésseder,

Série Poeta -- Homenagem a Júlio / Saul Dias

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25
Jul 13

MARCHA QUASE FÚNEBRE

Silencioso e tranquilo

Como um rastro de desgraça,

No outro lado da praça,

O lento cortejo passa

Das meninas do asilo.

 

São todas órfãs? -- Pior:

São todas tristes e feias.

Saias pretas, grossas meias...

Corre-lhes sangue nas veias

Por milagre do Senhor.

 

Que fazem durante o dia?

-- Aprendem a soletrar.

A coser... E o sol? E o ar?

Quando pensam em lhes dar

Uma lição de alegria?

 

Carlos Queirós,

Desaparecido

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24
Jul 13
24
Jul 13

MEU MENINO, INO, INO

1

 

Dos versos que exprimem,

Estou cansado!

 

Das palavras que explicam,

Estou cansado!

 

Ai, embala-me, fútil, e frágil, no ó-ó dos teus versos,

Ai, encosta-me ao peito...!

 

Mais não quero que ser embalado.

 

 

2

 

O menino está doente...

-- Diz a mãe.

 

Qui-é qui-é

Que o menino tem?

 

Ai...!

Diz o pai.

 

A criada velha chora pelos cantos

E reza a todos os santos...

 

Afirma o senhor doutor

Que amanhã que está melhor.

 

O pai suspira:

-- Quem sabe lá?!

 

E o menino diz:

-- Papá...!

 

A mãe chora:

-- Quem já me dera amanhã!...

 

E o menino diz:

-- Mamã...!

 

E, com a febre, rezinga,

E choraminga,

Olhando a lua amarela

Como uma vela:

-- Quero aquela péla...!

 

Mas o Pai do Céu sorri:

-- Vem cá vê-la!

É para ti.

 

 

3

 

-- Acabaste?

 

-- Meu amor, acabei.

 

-- Apagaste a candeia? apagaste?

 

-- Meu amor, apaguei.

 

- E fechaste o postigo? e fechaste?

 

- Meu amor..., sim, fechei.

 

-- Que rumor é aquele? não sentes?

 

-- Meu amor, que te importa?

É a vida a dar socos na porta.

É lá fora. São eles. É o mundo. São gentes.

 

-- São gentes? Quem são?

 

-- São colegas, amigos, parentes...

 

-- Vai dizer-lhes que não! Vai dizer-lhes que não!

 

José Régio,

As Encruzilhadas de Deus

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22
Jul 13

"Nunca fites quem encanto tem"

Nunca fites quem encanto tem

Foge depressa de um tal olhar:

Quanta desgraça do destino vem

Ao que o amor não sabe evitar.

 

Ibn at-Talla,

in Adalberto Alves, O Meu Coração É Árabe

-- A Poesia Luso-Árabe

 

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22
Jul 13

CHORO DE VAGAS

Não é de águas apenas e de ventos,

no rude som, formada a voz do Oceano:

Em seu clamor -- ouço um clamor humano,

Em seus lamentos -- todos os lamentos.

 

São de náufragos mil estes acentos,

Estes gemidos, esse aiar insano;

Agarrados a um mastro, ou tábua, ou pano,

Vejo-os varridos de tufões violentos;

 

Vejo-os na escuridão da noite, aflitos,

Bracejando, ou já mortos e de bruços,

Largados das marés em ermas plagas...

 

Ah! que são deles estes surdos gritos,

Esse rumor de preces e soluços

E o choro de saudade destas vagas!

 

Alberto de Oliveira,

Poesias

inEvaristo Pontes do Santos, Antologia Portuguesa e Brasileira

(1974)

 

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19
Jul 13

THE LAKE ISLE OF INNISFREE

I will arise and go now, and go to Inisfree,

And a small cabin build there, of clay and wattles made:

Nine bean-rows will I have there, a hive for the honey-bee,

And live alone in the bee-loud glade.

 

And I shall have some peace there, for peace comes dropping slow,

Dropping from the veils of the morning to where the cricket sings;

There midnight's all a glimmer, and noon a purple glow

And evening full of the linnet's wings.

 

I wil arise and go now, for always night and day

I hear lake water lapping with low sounds by the shore;

While I stand on the roadway, or on the pavements grey,

I hear it in the deep heart's core.

 

W. B. Yeats, Poemas

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19
Jul 13

WARNING

Tu, que te abandonaste ao gozo

sentindo a roçar no sexo

o húmido duma língua desejada

 

Tu, que fechaste os olhos em delírio

e afagaste os cabelos sedosos

dum ser que te deu prazer

 

Tu, que gemeste como louca

em noite trovoada

com travo orgiástico

 

Tu, que sentiste na goela

o frio da lâmina a cortar-te as veias

 

Tu, sim, tu

devias ter-te lembrado

antes de morrer

 

Os serial killers

também fazem

minete

´

Dick Hard,

De Boas Erecções Está o Inferno Cheio

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18
Jul 13
18
Jul 13

CICLO DIÁRIO

todo o dia nasço

e perco um pouco

do que ontem fui

e ganho um pouco

do que hoje sou

 

toda noite morro

e perco um pouco

do que hoje sou

e ganho um pouco

do que amanhã [serei]

 

como água de rio

que vira tecido de nuvem

como tecido de nuvem

que vira água de chuva

como água de chuva

que volta a ser água de rio

 

como a vida

que desagua sem fim

 

Rodrigo Tomé,

Humanoides

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