17
Jul 13

BERNAUER STRASSE

para Mariet Meester

 

Fomos os dois em busca de vestígios

entre terrenos maninhos, guindastes,

prédios devolutos, sinais de um tempo

que recebia essa memória a esfarelar-se

sob a fúria que avança, imobiliária.

 

Seguíamos o que nos arabescos de arame

farpado, podia ter sido, quem sabe,

uma linha telegráfica e fora só um quebra-mar

onde deter-se o vazamento e a fuga

de muitos na escolha de um destino.

 

A alma encordoada, de quarentena,

isolada por um cordão sanitário

24 horas de guarda à tentação de saltar --

lugar para aramistas se lançarem

em pleno voo na cerca viva.

 

Neste tempo em que de novo conflui

cada ovelha com sua parelha,

fomos tomando o pulso a uma cidade

dividida em partes iguais pela mesma rua,

vendo como o outro lado também era

uma tela de pintura primitiva,

longa tatuagem com dizeres sibilinos

por onde subia uma vaga vegetação psicadélica

em parietárias coloridas. Até descobrirmos

numa brecha um cemitério sob a folhagem

com as cruzes de acerto que na morte

vão juntando aquilo que o tempo apartou.

 

Paulo Teixeira,

O Anel do Poço / Resumo -- A Poesia em 2009 

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17
Jul 13

"A oferenda foi breve: duas camélias."

A oferenda foi breve: duas camélias.

Duas crateras de luz.

Duas espigas de água a arder

encostadas à claridade feroz

da tarde.

Dois remos.

Duas ânforas de sal, iluminando

a pele.

 

Apenas duas camélias, mãe.

 

Fernando Jorge Fabião,

Na Orla da Tinta

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16
Jul 13
16
Jul 13

"Quis ver o rosto do nada"

Quis ver o rosto do nada

quando olhei

para ver quem me seguia

ou seguiria

enquanto não olhasse

a sombra indecifrada

desta não sei se selva

ou estrada

ou talvez praia

ou destino perdido no caminho

 

Helder Macedo,

Viagem de Inverno

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15
Jul 13

"A mestra de lavores"

A mestra de lavores

leva, na mala de mão

estrelas, pássaros, flores.

 

Envelheceu a bordar

a prender em bastidores,

tudo quanto viu passar:

-- Estrelas, pássaros, flores.

 

Já tem os olhos cansados,

os dedos magros e picados

e sofre docoração,

mas é mestra de lavores

e tem, na mala de mão,

Estrelas, pássaros, flores.

 

A vida passou-lhe à porta,

passou mas não quis entrar.

Sem alegrias, sem penas,

sem a flor duma ilusão,

foi longa a vida a passar.

Mas agora que lhe importa,

Se em vez de sonhos e amores,

tem, na malinha de mão,

Estrelas, pássaros, flores?

 

Fernanda de Castro,

Cartas para Além do Tempo

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15
Jul 13

O CAVALEIRO E O ANJO

Passos da noite

Ao romper do dia

Quantos se ouviram

Marchando a par

Batem à porta

Da hospedaria

Se for o vento

Manda-o entrar

 

Vejo uma espada

De sombra esguia

Se for o vento

Que venha só

Quem está lá fora

Traz companhia

Botas cardadas

Levantam pó

 

Venho de longe

Sem luz nem guia

Sou estrangeiro

Não sou ninguém

Na flor queimada

Na cinza fria

Nunca se passa

Uma noite bem

 

Foge estrangeiro

Da morte escura

Pega nas armas

Vem batalhar

E enquanto a lua

Não se habitua

Dorme ao relento

Até eu voltar

 

Há muito tempo

Que te não via

(Um anjo negro

Me vem tentar)

Batem à porta

Da hospedaria

É aqui mesmo

Que eu vou ficar

 

José Afonso

publicado por RAA às 13:01 | comentar | favorito
12
Jul 13

AQUI

continuar aqui

apesar de

 

roendo pedra

comendo amor

 

(montanhas?

são tão estranhas

 

acima -- impassível

l'azur l'azur l'azur...

 

na única cidade

com abóbada celeste

 

abaixo -- impossível

vida sem saída

 

labirintos: look around

the lonely people)

 

continuar aqui

à beira de

 

comendo pedra

roendo amor

 

Carlos Ávila

inClaudio Daniel e Frederico Barbosa,

Na Virada do Século -- Poesia de Invenção no Brasil (2002)

publicado por RAA às 19:28 | comentar | favorito
12
Jul 13

PARA QUE AFLIGIRES-TE?...

Os teus hão-de deixar-te.

-- Para que hás-de afligir-te?

O frágil ramo verde

Da tua esperança há-de

Talvez cair quebrado

Antes de dar seu fruto.

-- P'ra que hás-de afligir-te?

A noite há-de cair

Por sobre o teu caminho.

-- Acaso poderás

Fazer parar a noite? --

Dia após dia, sempre

Hás-de acender a lâmpada.

E um dia a tua lâmpada

Talvez se apague... um dia.

-- Para que incomodares-te?

Ouvindo a tua voz

Os bichos da floresta

Virão a ti... No entanto,

Talvez em tua casa

Os corações de pedra

Não possam entender-te...

-- P'ra que serve afligires-te?

Se a porta está fechada

Vais-te, deixas a casa?

Bate à porta, persiste,

Empurra-a dia a dia.

          E talvez essa porta

          Nunca chegue a ceder...

Mas para que afligires-te?

 

Poesias de Tagore

(versão de Augusto Casimiro)

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08
Jul 13
08
Jul 13

EM TEMPO ALHEIO

Peço desculpa de ser

o sobrevivente.

Drummond, As Impurezas do Branco

 

 

Demasiados mortos para a

minha memória

O dia está aí um projector nos rostos

que repetem

cenas, deslocando-se entre os móveis

polidos pelos anos e as árvores, com falas retardadas

Não há quem sobreviva a ninguém no cenário

são somente aparências o que está

e o que falta,

todos em cada um,

enquanto ausentes o habitam como casa

em tempo alheio

Deixastes toda a esperança vós que entrastes

na memória

 

Gastão Cruz,

Rua de Portugal / O Escritor #22

(Lisboa, 2007)

 

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05
Jul 13
05
Jul 13

A VARIEDADE DO MUNDO

Este nasce, outro morre, acolá soa

Um ribeiro que corre, aqui suave,

Um rouxinol se queixa brando e grave,

Um leão c'o rugido o monte atroa.

 

Aqui corre uma fera, acolá voa

C'o grãozinho na boca ao ninho, ua ave,

Um derruba o edifício, outro ergue a trave,

Um caça, outro pesca, outro enferoa.

 

Um nas armas se alista, outro as pendura

Ao soberbo Ministro aquele adora,

Outro segue do Paço a sombra amada.

 

Este muda de amor, aquele atura.

Do bem, de que um se alegra, o outro chora...

Oh Mundo, oh sombra, oh zombaria, oh nada!

 

António Barbosa Bacelar,

in Maria Ema Tarracha Ferreira,

Antologia Literária Comentada

-- Época Clássica - Século XVII

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04
Jul 13
04
Jul 13

"Acesa a lâmpada p'la noite adiante"

Acesa a lâmpada p'la noite adiante,

e o meu amado sempre ardente amante.

Mas quão de amor sabia o meu amado!

O amor fazia com subtil cuidado.

Que a cama, de indiscreta, rangeria

para contar ao mundo o que sentia.

 

poema sânscrito anónimo,

Índia Clássica,

Jorge de Sena, Poesia de 26 Séculos

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