04
Jul 13
04
Jul 13

"não pude amar mais nada"

não pude amar mais nada

não pude amar mais ninguém

e mesmo que te minta

é o contrário disso

 

e mesmo que te minta

é a verdade seca

posta ali às avessas;

não pude amar mais claro

 

Fernando Assis Pacheco,

Memórias do Contencioso

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03
Jul 13

ADÃO E EVA...

1.

 

Feliz era a nudez. Vinha diurna

de dentro de si mesma. Porque o dia

ressumbrava recente desde a sua

novidade de pasmo. E de pupila

apta à evidência. E, por isso, arguta,

sem deduzir-se duma argúcia activa.

Onde fossem seus passos a espessura

entregava o seu fervor de enigma

para, depois, se recolher. Ter junta

e pronta a ordem de nova epifania.

Era a nudez da inteligência. Abrupta

e, ao mesmo tempo, de precisão tão íntima

que até os recantos justos da penumbra

recrutavam a luz da perspectiva.

 

Fernando Echevarría,

Relâmpago #2 (1998)

publicado por RAA às 18:47 | comentar | favorito
03
Jul 13

"Como é vil o coração que não sabe amar"

Como é vil o coração que não sabe amar,

que não pode embriagar-se de amor!

Se não amares, como poderás apreciar

a deslumbrante luz do sol e a doce claridade do luar?

 

Omar Khayyam,

Odes ao Vinho

(versão de Fernando Castro)

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01
Jul 13

GAZETILHA

Dos Lloyd Georges da Babilónia

Não reza a história nada.

Dos Briands da Assíria ou do Egito,

Dos Trotskys de qualquer colónia

Grega ou romana já passada,

O nome é morto, inda que escrito.

 

Só um parvo dum poeta, ou um louco

Que fazia filosofia,

Ou um geómetra maduro,

Sobrevive a esse tanto pouco

Que está lá para trás no escuro

E nem a história já historia.

 

Ó grandes homens do Momento!

Ó grandes glórias a ferver

De quem a obscuridade foge!

Tratem da fama e do comer,

Que amanhã é dos loucos de hoje!

 

Fernando Pessoa / Álvaro de Campos,

presença #18, Coimbra, 1929

publicado por RAA às 18:51 | comentar | favorito
01
Jul 13

COLEGIAL

Em cima da minha mesa,

Da minha mesa de estudo,

Mesa da minha tristeza

Em que, de noite e de dia,

Rasgo as folhas, leio tudo

Destes livros em que estudo,

E me estudo

(Eu já me estudo...)

E me estudo,

A mim,

Também,

Em cima da minha mesa,

Tenho o teu retrato, Mãe!

 

À cabeceira do leito,

Dentro dum lindo caixilho,

Tenho uma Nossa Senhora

Que venero a toda a hora...

Ai minha Nossa Senhora

Que se parece contigo,

E que tem, ao peito,

Um filho

(O que ainda é mais estranho)

Que se parece comigo,

Num retratinho,

Que tenho,

De menino pequenino...!

 

No fundo da minha mala,

Mesmo lá no fundo a um canto,

Não lhes vá tocar alguém,

(Quem as lesse, o que entendia?

Só riria

Do que nos comove a nós...)

Já tenho três maços, Mãe,

Das cartas que tu me escreves

Desde que saí de casa...

Três maços -- e nada leves! --

Atados com um retrós...

 

Se não fora eu ter-te assim,

A toda a hora,

Sempre à beirinha de mim,

(Sei agora

Que isto de a gente ser grande

Não é como se nos pinta...)

Mãe!, já teria morrido,

Ou já teria fugido,

Ou já teria bebido

Algum tinteiro de tinta!

 

José Régio,

As Encruzilhadas de Deus

publicado por RAA às 13:41 | comentar | favorito