28
Fev 14
28
Fev 14

RETRATO DE PABLO, VELHO

da sombra seu rosto se lança

um peixe

uma lua africana

boiando à superfície gasta e gris

a calva não dava um aviso

dos olhos vivos

de água, vivos

que engendram antes de ver

a testa de touro tem brio

empurra um nariz repartido:

uma face enfrenta,

a outra subtrai

o resto são rugas e ricto

papiro

e o som de cascos ancestrais

 

Claudia Roquette-Pinto,

Na Virada do Século -- Poesia de Invenção no Brasil

(edição: Claudio Daniel e Frederico Barbosa)

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20
Fev 14
20
Fev 14

OS POETAS SÃO P'RA DEVORAR À COLHERADA

Os poetas comem-se uns aos outros

na ânsia do martelo de Thor

das vísceras poéticas do potros

do soneto em dó maior

 

Os poetas são p'ra devorar à colherada

trincar as palavras com desdém

a poesia não tem hora marcada

não se compra ao quilo ou ao vintém

 

Trituram-se os versos sem piedade

as estrofes chovem nos rios a sul do norte

um vate é animal de soledade

sempre em busca de si até à morte

 

Os poetas não são mais que canibais

comem-se a eles e não sobra nada

diluem-se no fervor dos bacanais

apagam-se a sonhar co'a boa fada.

 

Dick Hard,

De Boas Erecções Esté o Inferno Cheio

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19
Fev 14
19
Fev 14

A UM ROUXINOL CANTANDO

Ramalhete animado, flor do vento,

Que alegremente teus ciúmes choras

Tu, cantando teu mal, teu mal melhoras,

Eu, chorando meu mal, meu mal aumento.

 

Eu digo minha dor ao sofrimento,

Tu cantas teu pesar a quem namoras,

Tu esperas o bem todas [as] horas,

Eu temo qualquer mal todo o momento.

 

Ambos agora estamos padecendo

Por decreto cruel do deos minino;

Mas eu padeço mais só porque entendo.

 

Que é tão duro e cruel o meu destino,

Que tu choras o mal que estás sofrendo,

Eu choro o mal que sofro e que imagino.

 

Francisco de Vasconcelos

in Maria Ema Tarracha Ferreira,

Antologia Literária Comentada --

Época Clássica -- Século XVII

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14
Fev 14

"Baise m'encor, rebaise-moi et baise"

Baise m'encor, rebaise moi et baise:

Donne m'en un de tes plus savoureux,

Donne m'en un de tes plus amoureux;

Je t'en rendrai quatre plus chauds que braise.

 

Las, te plains-tu? ça, que ce mal j'apaise

En t'en donnant dix autres doucereux,

Ainsi mêlant nos baisers tant heureux,

Jouissons-nous l'un de l'autre à notre aise.

 

Lors, double vie à chacun en suivra,

Chacun en soi et son ami vivra

Permets m'Amour penser quelque folie;

 

Toujours suis mal, vivant discrètement,

Et ne puis donner contentement,

Si hors de moi ne fais qualque saillie.

 

Louise Labé,

in Pierre Rippert,

Dictionaire Anthologique da la Poésie Française (1998)

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14
Fev 14

IMAGEM

Ó corpo feito à imagem

de meu desejo e meu amor,

que vais comigo de viagem

pra onde eu for,

 

que mar é este em que andamos,

há três noites bem contadas

e não tem ventos nem escolhos

nem ondas alevantadas?

 

que sol é este, que aquece,

mas sereno, tão sereno,

que nem te põe menos branca

nem a mim põe mais moreno?

 

que paz é esta, nas horas

mais violentas e bravas?

(Sorrias: ias falar.

Sorrias e não falavas.)

 

que porto é este? esta ilha?

que terra é esta em que estamos?

(Era uma nuvem, de longe...

Deixou de o ser, mal chegámos.)

 

e este caminho, onde leva?

e onde acaba este jardim

que é tão em mim que é em ti?

que é tão em ti que é em mim?...

 

Ó alma feita à imagem

do sonho que me desmede

-- que sede é esta que temos

que é mais água do que sede?

 

Sebastião da Gama,

Pelo Sonho É que Vamos

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11
Fev 14
11
Fev 14

1063 TWENTY-SIXTH ST. SANTA MONICA

Brecht na Califórnia

 

Pede-se-nos complacência

para com os bons selvagens,

se olham com expressão amável

a nobreza romana banida

de uma vez para o Ponto.

 

Aqui prossegue uma existência insular

essa Weimar das sombras,

com a sua moral rígida e os costumes austeros,

as disputas vãs e recorrentes

sobre os sentidos que toma a guerra

na Europa, como se aí um outro vivesse

o prolongamento das suas vidas amputadas

nesta margem leve e frívola da América.

 

Trocam currículos e carreiras,

declarações de rendimentos válidas por cinco anos,

pelo direito de habitar este litoral de palmeiras

e limoeiros de meridional Itália,

mas onde a musa se não demora

a soprar ventos da Cítia

entre barcos, redes de pesca

e ninfas de praia (californianas).

 

Vieram para morrer entre os Getas,

adeptos do surf & da bricolage,

à sombra de estúdios de cinema,

casinos e poços de petróleo.

 

Sabemos como a vida imita os filmes.

 

Os mítos no tempo da física

são como as estrelas poeira sem brilho

num mundo de luz artificial

e poesia impossível --

como compor hoje uma ode

ao deus menor que move,

acima do rumor de pneumáticos e motores,

os mecanismos da sorte

em Sunset Boulevard?

 

Paulo Teixeira,

O Anel do Poço /

/ Resumo -- A Poesia em 2009

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10
Fev 14
10
Fev 14

PERDÃO!

Seria o beijo

Que te pedi,

Dize, a razão

(outra não vejo)

Por que perdi

Tanta afeição?

Fiz mal, confesso;

Mas esse excesso,

Se o cometi,

Foi por paixão,

Sim, por amor

De quem?... de ti!

 

Tu pensas, flor,

Que a mulher basta

Que seja casta,

Unicamente?

Não basta tal:

Cumpre ser boa,

Ser indulgente.

Fiz-te algum mal?

Pois bem: perdoa!

 

É tão suave

Ao coração

Mesmo o perdão

De ofensa grave!

Se o alcançasse,

Se o conseguisse,

Quisera então

Beijar-te a mão,

Beijar-te a face...

Beijar? que disse!

(Que indiscrição...)

Perdão! perdão!

 

João de Deus,

Campo de Flores

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06
Fev 14
06
Fev 14

GRÂNDOLA, VILA MORENA

Grândola vila morena

Terra da fraternidade

O povo é quem mais ordena

Dentro de ti ó cidade

 

Dentro de ti ó cidade

O povo é quem mais ordena

Terra da fraternidade

Grândola vila morena

 

Em cada esquina um amigo

Em cada rosto igualdade

Grândola vila morena

Terra de fraternidade

 

Terra de fraternidade

Grândola vila morena

Em cada rosto igualdade

O povo é quem mais ordena

 

À sombra duma azinheira

Que já não sabia a idade

Jurei ter por companheira

Grândola a tua vontade

 

Grândola a tua vontade

Jurei ter por companheira

À sombra duma azinheira

Que já não sabia a idade

 

José Afonso

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05
Fev 14

UMA FLAUTA TOCA

Múrmura brisa

me traz o som

da flauta clara

lá na montanha

enluarada.

Onde haverá

flauta tocada

no coração

que me retorne

ao lar?

De brisa o som

enche-me as salas

tal como o luar

cobre as montanhas

e os vales.

 

Noite como esta

as hordas bárbaras

no Norte entraram.

E a melodia

me acompanhava

na longa via

em que fugia

até o Sul.

Quando o salgueiro

os ramos pende

na noite fria

nus.

No triste inverno

como esperar

pelo milagre

de lhe nascerem

folhas?

 

Tu Fu

Jorge de Sena,

Poesia de 26 Séculos

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05
Fev 14

"-- Não era ninguém. A água."

-- Não era ninguém. A água. -- Ninguém?

Pois não é ninguem a água? -- Não

há ninguém. É a flor. -- Não há ninguém?

Mas não é ninguém a flor?

 

-- Não há ninguém. Era o vento. -- Ninguém?

Não é o vento ninguém? -- Não

há ninguém. Ilusão. -- Não há ninguém?

Não é ninguém a ilusão?

 

Juan Ramón Jiménez,

Antologia Poética

(trad. José Bento)

 

 

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