31
Mar 14
31
Mar 14

FIDELIDADE

Duas andorinhas voando sempre a par,

       não distinguem as torres de jade, nem palácios lacados,

mas juntas pousam,

       não distinguem balaustradas de mármore, nem ornatos de janelas,

mas juntas pousam.

       Incendiou-se a trave onde haviam feito o ninho,

as andorinhas fugiram do palácio imperial.

       O palácio também devorado pelo fogo,

mortos a andorinha-macho e os filhotes.

       Ao regressar, a andorinha-fêmea pairou longamente no ar,

contemplando as ruínas do palácio.

       Esta história me entristece.

 

Poemas de Li Bai

(trad. António Graça de Abreu)

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27
Mar 14
27
Mar 14

OS EUNUCOS

Os eunucos devoram-se a si mesmos

Não mudam de uniforme, são venais

E quando os mais são feitos de torresmos

Defendem os tiranos contra os pais

 

Em tudo são verdugos mais ou menos

Nos jardins dos haréns ou principais

E quando os pais são feitos em torresmos

Não matam os tiranos pedem mais

 

Suportam toda a dor na calmaria

Da olímpica mansão dos samurais

Havia um dono a mais da satrapia

Mas foi lançado à cova dos chacais

 

Em vénias malabares, à luz do dia

Lambuzam de saliva os maiorais

E quando os mais são feitos em fatias

Não matam os tiranos, pedem mais

 

José Afonso

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25
Mar 14
25
Mar 14

VELHA ANEDOTA

Tertuliano, frívolo peralta,

Que foi um paspalhão desde fedelho,

Tipo incapaz de iuvir um bom conselho,

Tipo que, morto, não faria falta;

 

Lá um dia deixou de andar à malta,

E indo à casa do pai, honrado velho,

A sós na sala, em frente de um espelho,

À própria imagem disse em voz bem alta:

 

-- Tertuliano, és um rapaz formoso!

És simpático, és rico, és talentoso!

Que mais no mundo se te faz preciso?

 

Penetrando na sala, o pai sisudo

Que por trás da cortina ouvira tudo,

Severamente respondeu: -- Juízo!

 

Artur Azevedo,

in Evaristo Pontes dos Santos,

Antologia Portuguesa e Brasileira (1974)

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21
Mar 14
21
Mar 14

"Homem que bebes, ânfora imensa, ignoro quem te modelou."

Homem que bebes, ânfora imensa, ignoro quem te modelou.

Somente sei que és capaz de conter três medidas de vinho

e que a Morte te destruirá um dia.

Então perguntarei a mim mesmo, mais demoradamente,

porque é que foste criado, porque é que foste feliz e por que, agora,

és somente poeira.

 

Omar Khayyam, Rubaiyat

(trad.: Fernando Castro)

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19
Mar 14
19
Mar 14

ANAXIMANDRO DIMINUI

Cinco sentidos para um coração.

Quatro lados do mundo para uma terra.

Três dimensões para um espaço.

Dois seres para um filho.

Uma vida para uma morte.

Nenhuma palavra para o infinito que une

coração, terra, espaço, filho e morte.

 

Milan Dekleva

 

[sacado do JL de hoje, coluna de Fernando Guimarães,

recensão a Poetas Eslovenos e Portugueses do Século XX,

edição da Guimarães, Capital Europeia da Cultura.

Desconheço o tradutor]

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17
Mar 14
17
Mar 14

"Não desesperes"

Não desesperes, hás-de ser califa

Pois não saiu a Ibn Amr na rifa

Chegar a chefe alfandegário?

Oh, que tempo este torpe e vário

Que em altos posto colocar soe

Quem mais que limpa-esgotos nunca foi.

 

'Abd Allah Ibn Wazir,

in Adalberto Alves,

O Meu Coração É Árabe  (1987)

 

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10
Mar 14

TARDE DE INVERNO

Sobre o planalto adormecido

Num frio leito de inverno,

Agasalhado de brumas,

Um Sol terno,

Distraído...

 

De longe, a montanha sombria

Exala uma aragem fria.

 

Cheira a serra,

A terra,

Morta...

 

Mas com seu odor mais forte,

Ao apelo do vento norte

Responde

A minha melancolia...

 

 

Numa colina humilhada

De chuva, de ventanias,

Crucificado num céu dorido,

Surge um pastor como um vencido.

        Em fila, atrás,

Vem o rebanho humílimo balindo;

        Traz nos olhos a paz,

        A paz grave da serra;

E entre os dorsos compactos, de lã fina,

Paira a sombra primeira aventurosa,

O alvoroço da noite misteriosa,

        O pranto da neblina!...

 

Fausto José

presença #18 (1929)

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10
Mar 14

CANÇÃO DA NÉVOA

Tristezas leva-as o vento;

Vão no vento; andam no ar...

Anda a espuma, à tona da água,

E à flor da noite o luar...

 

Vindes dum peito que sofre?

De uma folha a estiolar?

Donde vindes, donde vindes,

Tristezas que andais, no ar?

 

Eflúvios, emanações,

Saídas da terra e do mar,

Sois nevoeiros de lágrimas

Que o vento espalha, no ar...

 

Suspiros brandos e leves

De avezinhas a expirar;

Ermas sombras de canções,

Que ficaram por cantar!

 

Brancas tristezas subindo

Das fontes, que vão secar!

E das sombras que, à noitinha,

Ouve a gente murmurar.

 

Saudades, melancolias,

Que o Poeta vai aspirar...

Melancolias e mágoas,

Que são almas a voar.

 

E o Poeta solitário,

Fica a cismar, a cismar...

Todo embebido em tristezas,

Levadas na onda do ar...

 

E o Poeta se transfigura,

É a voz do mundo a falar!

E aquela voz também vai,

No vento que anda no ar...

 

Teixeira de Pascoais,

Sombras / Antologia Poética

(edição de Ilídio Sardoeira)

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