30
Jun 14
30
Jun 14

A GARÇA-REAL

A garça-real desce sobre as águas de Outono,

          voa sozinha, como um floco de neve,

numa paz completa, num total abandono.

          Pousa depois na margem de areia, ao de leve.

 

Poemas de Li Bai

(versão de António Graça de Abreu)

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27
Jun 14

"O boi morreu naquela madrugada de Abril."

O boi morreu naquela madrugada de Abril.

António adormecera a seu lado, caído de sono nas palhas.

Quando acordou, a candeia velava ainda e o boi-amigo morto.

Morto. Bezerrinho, custara sete notas na feira de Ancião.

Cacilda chorou silenciosamente; os filhos acariciaram o lombo,

trémulos de medo e espanto.

Abril e a terra por lavrar.

Abril e daí a meses o milho sem o dorso rijo do boi a caminho da eira.

O pasto apodrecendo no monte.

As oliveiras por amanhar.

Abril, madrugada, e o boi-amigo morto.

Deus nos perdoe: Antes se fosse gente.

 

Fernando Namora, Terra

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27
Jun 14

MAIO MADURO MAIO

Maio maduro maio

Quem te pintou

Quem te quebrou o encanto

Nunca te amou

Raiava o Sol já no Sul

E uma falua vinha

Lá de Istambul

 

Sempre depois da sesta

Chamando as flores

Era dia de festa

Maio de amores

Era dia de cantar

E uma falua andava

Ao longe a varar

 

Maio com meu amigo

Quem dera já

Sempre depois do trigo

Se cantará

Qu'importa depois do trigo

Se cantará

Qu'importa a fúria do mar

Que a voz não te esmoreça

Vamos lutar

 

Numa rua comprida

El-rei pastor

Vende o soro da vida

Que mata a dor

Venham ver, Maio nasceu

Que a voz não te esmoreça

A turba rompeu

 

José Afonso

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26
Jun 14
26
Jun 14

O MACACO DECLAMANDO

Um mono, vendo-se um dia

Entre brutal multidão,

Dizem lhe deu na cabeça

Fazer uma pregação.

 

Creio que seria o tema

Indigno de se tratar,

Mas isso pouco importava,

Porque o ponto era gritar.

 

Teve mil vivas, mil palmas,

Proferindo à boca cheia

Sentenças de quinze arrobas,

Palavras de légua e meia.

 

Isto acontece ao Poeta,

Orador e outros que tais:

Néscios o que entendem menos

É o que celebram mais.

 

Fábulas de Bocage

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20
Jun 14
20
Jun 14

"A rosa canta"

A rosa canta

Para além da janela

Há muitos dias

 

 

 

Vai esmorecendo

 

 

Sem que ninguém

                             quase

Dê por isso

 

Yèvre-le-Châtel

4 de Julho 90

 

Alberto de Lacerda, Átrio

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19
Jun 14
19
Jun 14

"Na Primavera, gosto de me sentar na orla de um campo florido."

Na Primavera, gosto de me sentar na orla de um campo florido.

E, quando uma bela rapariga me traz uma taça de vinho,

não me importa nada a minha salvação.

Se eu tivesse essa preocupação, valeria menos que um cão.

 

Omar Khayyam, Odes ao Vinho

(versão de Fernando Castro)

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18
Jun 14
18
Jun 14

"Os filhos dos mortos já não são irmãos"

Os filhos dos mortos já não são irmãos

na vida bifurcada de que sobram

 

e embora o que procria procriase

e aquele que foi amado amor criasse

 

os filhos dos mortos são corpos das sombras

que neles reproduziram quem não são.

 

Helder Macedo, Viagem de Inverno

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13
Jun 14

TRABALHO

é preciso escrever o poema. formar a

palavra. amá-la.

escrever por exemplo o homem e

pôr os testículos à

mostra para confirmação do

substantivo.

 

é preciso também escrever amor a

tinta da china   preta de

preferência para

maior duração do

coito.

 

e mar. é preciso escrever mar

navio vaga como quem

semicircula uma foice como quem

desenha uma

gaivota na charneca do

mar.

 

e é preciso também escrever

medo

para que o poema tenha cãs

e a esperança cresça

prenha

no grito mais secreto das manhãs.

 

Eduardo Olímpio,

in Cadernos Despertar #1 (1982)

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13
Jun 14

CANÇÃO LUARENTA

Vem do Marão, alta serra,

O luar da minha terra.

 

Ora vem a lua nova,

Que é um perfil

De donzela falecida...

Nas claras noites de Abril,

Em névoa de alma surgida,

Anda a errar

E a suspirar,

Em volta da sua cova...

 

Ora vem a Lua cheia...

Rosto enorme

E luminoso,

Num sorriso misterioso,

Por sobre a aldeia

Que dorme...

 

Vem do Marão, alta serra,

O luar da minha terra.

 

Teixeira de Pascoais,

Terra Proibida (1899) / Antologia Poética

(edição de Ilídio Sardoeira, 1977)

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11
Jun 14
11
Jun 14

AMIZADE

De mais ninguém, senão de ti, preciso:

Do teu sereno olhar, do teu sorriso,

Da tua mão pousada no meu ombro.

Ouvir-te murmurar: -- «Espera e confia!»

E sentir converter-se em harmonia,

O que era, dantes, confusão e assombro.

 

Carlos Queirós,

Desaparecido (1935)

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