A GARÇA-REAL
A garça-real desce sobre as águas de Outono,
voa sozinha, como um floco de neve,
numa paz completa, num total abandono.
Pousa depois na margem de areia, ao de leve.
Poemas de Li Bai
(versão de António Graça de Abreu)
A garça-real desce sobre as águas de Outono,
voa sozinha, como um floco de neve,
numa paz completa, num total abandono.
Pousa depois na margem de areia, ao de leve.
Poemas de Li Bai
(versão de António Graça de Abreu)
O boi morreu naquela madrugada de Abril.
António adormecera a seu lado, caído de sono nas palhas.
Quando acordou, a candeia velava ainda e o boi-amigo morto.
Morto. Bezerrinho, custara sete notas na feira de Ancião.
Cacilda chorou silenciosamente; os filhos acariciaram o lombo,
trémulos de medo e espanto.
Abril e a terra por lavrar.
Abril e daí a meses o milho sem o dorso rijo do boi a caminho da eira.
O pasto apodrecendo no monte.
As oliveiras por amanhar.
Abril, madrugada, e o boi-amigo morto.
Deus nos perdoe: Antes se fosse gente.
Fernando Namora, Terra
Maio maduro maio
Quem te pintou
Quem te quebrou o encanto
Nunca te amou
Raiava o Sol já no Sul
E uma falua vinha
Lá de Istambul
Sempre depois da sesta
Chamando as flores
Era dia de festa
Maio de amores
Era dia de cantar
E uma falua andava
Ao longe a varar
Maio com meu amigo
Quem dera já
Sempre depois do trigo
Se cantará
Qu'importa depois do trigo
Se cantará
Qu'importa a fúria do mar
Que a voz não te esmoreça
Vamos lutar
Numa rua comprida
El-rei pastor
Vende o soro da vida
Que mata a dor
Venham ver, Maio nasceu
Que a voz não te esmoreça
A turba rompeu
José Afonso
Um mono, vendo-se um dia
Entre brutal multidão,
Dizem lhe deu na cabeça
Fazer uma pregação.
Creio que seria o tema
Indigno de se tratar,
Mas isso pouco importava,
Porque o ponto era gritar.
Teve mil vivas, mil palmas,
Proferindo à boca cheia
Sentenças de quinze arrobas,
Palavras de légua e meia.
Isto acontece ao Poeta,
Orador e outros que tais:
Néscios o que entendem menos
É o que celebram mais.
Fábulas de Bocage
A rosa canta
Para além da janela
Há muitos dias
Vai esmorecendo
Sem que ninguém
quase
Dê por isso
Yèvre-le-Châtel
4 de Julho 90
Alberto de Lacerda, Átrio
Na Primavera, gosto de me sentar na orla de um campo florido.
E, quando uma bela rapariga me traz uma taça de vinho,
não me importa nada a minha salvação.
Se eu tivesse essa preocupação, valeria menos que um cão.
Omar Khayyam, Odes ao Vinho
(versão de Fernando Castro)
Os filhos dos mortos já não são irmãos
na vida bifurcada de que sobram
e embora o que procria procriase
e aquele que foi amado amor criasse
os filhos dos mortos são corpos das sombras
que neles reproduziram quem não são.
Helder Macedo, Viagem de Inverno
é preciso escrever o poema. formar a
palavra. amá-la.
escrever por exemplo o homem e
pôr os testículos à
mostra para confirmação do
substantivo.
é preciso também escrever amor a
tinta da china preta de
preferência para
maior duração do
coito.
e mar. é preciso escrever mar
navio vaga como quem
semicircula uma foice como quem
desenha uma
gaivota na charneca do
mar.
e é preciso também escrever
medo
para que o poema tenha cãs
e a esperança cresça
prenha
no grito mais secreto das manhãs.
Eduardo Olímpio,
in Cadernos Despertar #1 (1982)
Vem do Marão, alta serra,
O luar da minha terra.
Ora vem a lua nova,
Que é um perfil
De donzela falecida...
Nas claras noites de Abril,
Em névoa de alma surgida,
Anda a errar
E a suspirar,
Em volta da sua cova...
Ora vem a Lua cheia...
Rosto enorme
E luminoso,
Num sorriso misterioso,
Por sobre a aldeia
Que dorme...
Vem do Marão, alta serra,
O luar da minha terra.
Teixeira de Pascoais,
Terra Proibida (1899) / Antologia Poética
(edição de Ilídio Sardoeira, 1977)
De mais ninguém, senão de ti, preciso:
Do teu sereno olhar, do teu sorriso,
Da tua mão pousada no meu ombro.
Ouvir-te murmurar: -- «Espera e confia!»
E sentir converter-se em harmonia,
O que era, dantes, confusão e assombro.
Carlos Queirós,
Desaparecido (1935)