31
Jul 14

SER MULHER

Ser mulher não é ter nas formas de escultura,

No traço do perfil, no corpo fascinante,

A beleza que um dia o tempo transfigura

E um olhar deslumbrado atrai a cada instante.

 

Ser mulher não é só ter a graça empolgante,

O feitiço absorvente, a lascívia e a ternura;

Ser mulher não é ter na carne provocante

A volúpia infernal que arrasta e desfigura...

 

Ser mulher é ter na alma essa imortal beleza

De quem sabe pensar com toda a sutileza

E no próprio ideal rara virtude alcança...

 

É ter, simples e pura, os sentimentos francos...

E, ainda, no fulgor dos seus cabelos brancos,

Sonhar como mulher, sentir como criança!

 

Carmen Cinira, 

Sensibilidade / Antologia Portuguesa e Brasileira

(edição de Evaristo Pontes Rodrigues,1974)

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31
Jul 14

CANÇÃO DO MUNDO PERDIDO

Menino: o teu mundo,

Também já foi meu;

Tão belo e profundo,

Tão perto do céu!

 

Mas o Tempo veio

E fez-me (tão cedo!)

Acordar, a meio

Do sonho mais ledo.

 

A chave emprestada,

Quis restituída;

Ou antes: trocada

P'la chave da vida.

 

Que mundo tristonho,

Agora, é o meu!

Tão pobre de sonho,

Tão longe do céu!

 

Quem tal o diria?!

 

O mundo que um dia

Também será teu...

 

Carlos Queirós

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28
Jul 14
28
Jul 14

"Se havia corvos não sei"

Se havia corvos não sei

porque há metáforas

de que é prudente sempre duvidar.

 

Havia um galo de ferro

e o hotel

e o telhado onde fora um catavento.

 

Mas agora só grasnava

com a ferrugem

tolhido no seu corpo de aviário

libertado em simulacro.

 

Helder Macedo,

Viagem de Inverno

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25
Jul 14
25
Jul 14

YÈVRE-LE-CHÂTEL

Dias intensos

 

 

Verde

 

 

Onde paira

 

 

Refractada

 

 

A eternidade

 

Yèvre-le-Châtel

4-5 de Julho 90

 

 

Alberto de Lacerda, Átrio

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24
Jul 14
24
Jul 14

"O vasto mundo"

O vasto mundo: um grão de poeira no espaço.

Toda a ciência dos homens: palavras.

Os povos, os animais e flores dos sete climas: sombras.

O resultado da tua perpétua meditação: nada.

 

Omar Khayyaam, Rubaiyat

(versão de Fernando Castro)

publicado por RAA às 13:54 | comentar | favorito
23
Jul 14
23
Jul 14

"Os caminhos desta tarde"

Os caminhos desta tarde

fazem-se um, com a noite.

Por ele irei eu a ti,

amor que tanto te escondes.

 

Por ele irei eu a ti,

como vai a luz dos montes,

como a viração do mar,

como o aroma das flores.

 

Juan Ramón Jimenez, Antologia Poética

(versão de José Bento)

publicado por RAA às 13:35 | comentar | favorito
22
Jul 14
22
Jul 14

DORME, AMOR

Brilham na vala as gotas salgadas.

A porta está fechada. E o mar,

fervente, erguendo-se e rompendo contra os diques,

absorveu o sol salgado.

Dorme, amor...

                          Não atormentes a minha alma.

Adormecem já as montanhas e a estepe,

e o nosso cão coxo,

                                 de pêlo emaranhado,

deixa-se cair e lambe a corrente salgada.

E o rumor dos ramos,

                                   e o fragor das ondas,

e o cão acorrentado

                                 com toda a sua experiência,

e eu com voz muito branda

                                            e logo num murmúrio

e depois em silêncio

                                 dizemos-te ambos: dorme, amor...

Dorme, amor...

                          Esquece que nos zangámos.

Imagina por exemplo:

                                    acordamos.

                                                        Tudo está fresco.

Caímos sobre o feno.

                                   Temos sono.

                                                        Vem um cheiro a leite azedo

lá de baixo,

                    da cave

                                  convidando a sonhar.

Oh, como poderei fazer-te

                                           imaginar tudo isto,

a ti, tão desconfiada!

                                   Dorme, amor...

Sorri entre sonhos.

                                Não chores mais!

Corta flores e vai pensando

                                              onde hás-de pôlas,

e compra muitos vestidos bonitos.

Disseste alguma coisa?

                             É o cansaço do teu sonho inquieto.

Envolve-te no sonho, agasalha-te bem nele.

Podemos ver em sonhos tudo o que queremos,

tudo o que ansiamos

                                  quando estamos acordados.

É aburdo não dormir,

                                   é mesmo um delito:

o que trazemos oculto

                                     grita-nos nas entranhas.

Que difícil para os teus olhos

                                                trazer tanta coisa!

Debaixo das pálpebras

                                       sentirão o alívio do sonho.

Dorme, amor...

                         Porque estás acordada?

É o bramido do mar?

                                  A súplica das árvores?

Um mau pressentimento?

                                          A sem-vergonha de alguém?

Ou talvez não de alguém

                                         mas simplesmente a sem-vergonha minha?

Dorme, amor...

                          Não é possível fazer nada,

mas sabe desde já que não é culpa minha esta culpa.

Perdoa-me -- estás a ouvir?

                                              Ama-me -- estás a ouvir --

mesmo que seja só em sonhos,

                                                    só em sonhos!

Dorme, amor...

                         Estamos num mundo

que voa enlouquecido

                                    e ameaça explodir,

e é preciso abraçarmo-nos

                                            para não cairmos dele,

e se tivermos que cair,

                                     vamos cair abraçados.

Dorme, amor...

                         Não te deixes encher de raiva.

Que o sonho penetre suavemente nos teus olhos

já que é tão difícil dormir neste mundo.

Mas apesar de tudo

                                 -- ouves-me, amor? --

                                                                     dorme...

E o rumor dos ramos,

                                   e o fragor das ondas,

e o cão na corrente

com toda a sua experiência,

e eu com voz muito branda

                                           e logo num murmúrio

e depois em silêncio

                         dizemos-te ambos: dorme, amor...

 

Ievgueni Ievtuchenko,

Ievtuchenko em Lisboa

(trad: J. Seabra Dinis e

Fernando Assis Pacheco)

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21
Jul 14

PREIA-MAR

As ondas quebram na areia,

dizem segredos perdidos...

Saudades da maré-cheia,

de barcos e tempos idos...

 

Segredos tristes, lamentos,

que o mar não pôde calar...

E foi dizê-los aos ventos,

aos pescadores, ao luar...

 

As ondas dizem na areia

saudades de tempos idos...

Segredos da maré-cheia,

de barcos tristes

                          -- perdidos...

 

Daniel Filipe,

in Manuel Ferreira,

No reino de Caliban I

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21
Jul 14

DISTÂNCIAS

Medida em centímetros

de margalho

qual a distância que vai

da ternura à luxúria?

 

Dick Hard,

De Boas Erecções Está o Inferno Cheio

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18
Jul 14
18
Jul 14

AMORES, AMORES

Não sou eu tão tola

Que caia em casar;

Mulher não é rola

Que tenha um só par:

     Eu tenho um moreno,

Tenho um de outra cor,

Tenho um mais pequeno,

Tenho outro maior.

 

Que mal faz um beijo,

Se apenas o dou,

Desfaz-se-me o pejo,

E o gosto ficou?

     Um deles por graça

Deu-me um, e depois,

Gostei da chalaça,

Paguei-lhe com dois.

 

Abraços, abraços,

Que mal nos farão?

Se Deus me deu braços,

Foi essa a razão:

    Um dia que o alto

Me vinha abraçar,

Fiquei-lhe de um salto

Suspensa no ar.

 

Vivendo e gozando,

Que a morte é fatal,

E a rosa em murchando

Não vale um real:

     Eu sou muito amada,

E há muito que sei

Que Deus não fez nada

Sem ser para quê.

 

Amores, amores,

Deixá-los dizer;

Se Deus me deu flores,

Foi para as colher:

     Eu tenho um moreno,

Tenho um de outra cor,

Tenho um mais pequeno,

Tenho outro maior.

 

João de Deus,

Campo de Flores

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