18
Dez 14
18
Dez 14

"Veio, primeiro, pura"

Veio, primeiro, pura,

vestida de inocência;

amei-a como a um menino.

Logo se foi vestindo

de não seu eu que roupagens;

fui odiando-a, sem saber.

Chegou a grande rainha,

faustosa de tesouros...

Que fúria de fel sem sentido!

Mas foi-se desnudando

e eu lhe sorria.

Quedou-se apenas na túnica

de sua inocência antiga.

De novo acreditei nela.

Despiu então sua túnica

e surgiu desnuda toda...

Paixão da minha vida, poesia,

desnuda e minha para sempre!

 

Juan Ramón Jimenez

in Jorge de Sena, Poesia do Século XX (1978)

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17
Dez 14
17
Dez 14

CANTO INTERIOR DE UMA NOITE FANTÁSTICA

Sereno, mas resoluto

aqui estou -- eu mesmo! -- gritando desvairado

que há um fim por que luto

e me impede de passar ao outro lado.

 

Ante esta passagem de nível

nada de fáceis transposições

Do lado de cá -- pareça embora incrível

é que me meço: princípio e fim das multidões.

 

Não quero tudo quanto me prometem aliciantes

Nada quero, se para mim nada peço,

o meu desejar é outro -- o meu desejo é antes

o desejo dos muitos com que me pareço.

 

Quem quiser que venha comigo

nesta jornada terrena, humana e sincera

E se for só -- ainda assim prossigo

num mar de tumulto, impelindo os remos sem galera.

 

Que venham glaucas ondas em voragem

que ardam fogos infernais

que até os vermes tenham a coragem

de me cuspir no rosto e no mais.

 

Que os lobos uivem famintos

que os ventos redemoinhem furiosos

que até os répteis soltem seus instintos

e me envolvam traiçoeiros e viscosos.

 

Que me derrubem e arremessem ao chão

que espesinhem meu corpo já cansado

à tortura e ao chicote ainda responderei não

e a cada queda -- de novo serei alevantado.

E não transporei a linha divisória

entre o meu e o outro caminho

Mesmo que a minha luta não tenha glória

é no campo de combate que alinho.

 

Assim continuarei a lutar, ai a lutar!

num perigoso mar de paixões e de escolhos

e -- companheiros -- se neste sofrer me virdes chorar

não acrediteis em vossos olhos!

 

Luanda, 31-7-1952

 

António Jacinto,

in Manuel Ferreira, No Reino de Caliban II

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03
Dez 14
03
Dez 14

CANÇÃO VERDE

A minha canção é verde

Sempre de verde a cantei!

De verde cantei ao povo

E fui de verde vestido

Cantar à mesa do Rei!

 

Porque foi verde o meu canto?

Porque foi verde?

                               -- Não sei...

 

Verde, verde, verde, verde,

Verde, verde, em vão cantei!

-- Lindo moço! disse o Povo.

-- Verde moço! disse El-rei.

 

Porque me chamaram verde?

Porque foi? Porquê?

                               -- Não sei...

 

Tive um amor -- Triste sina!

Amar é perder alguém...

Desde então ficou mais verde

Tudo em mim: a voz, o olhar,

Cada passo, cada beijo...

E o meu coração também!

 

Coração! porque és tão verde?

Porque és verde assim também?

 

Deu-me a vida, além do luto,

Amor à margem da lei...

Amigos são inimigos!

-- Paga-me!, gritaram todos.

Só eu de verde fiquei.

 

Porque fiquei eu de verde?

Porque foi isto?

                              -- Não sei...

 

A minha canção é verde

-- Canção à margem da lei...

Verde, ingénua, verde e moça,

Como a voz desta canção

Que, por meu mal vos cantei...

 

A minha canção é verde,

Verde, verde, verde, verde...

Mas... porque é verde?

                                -- Não sei...

Pedro Homem de Melo,

in As Folhas de Poesia Távola Redonda

(edição de António Manuel Couto Viana)

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01
Dez 14
01
Dez 14

CANTIGAS PARA OS TRABALHADORES DOS CAMPOS

Sou cavador, cavo a terra

Donde nasce a flor e o grão.

Dou aos outros a fartura

E em casa não tenho pão.

 

Hoje planto árvor's e vinha,

Lavro a terra, rego a horta,

E amanhã, em sendo velho,

Pedirei de porta em porta.

 

O sol a todos aquece,

Não nega a luz a ninguém,

Ama os bons e ama os maus

E assim foi Jesus também.

 

A árvore, quanto mais fruto,

Mais baixa os ramos p'ra o chão.

O homem, quanto mais rico,

Mais ergue a sua ambição.

 

A vida do pobre é isto:

-- Trabalhar enquanto moço,

E em velho andar às esmolas

Como o cão que busca um osso.

 

Morre um rico, dobram sinos!

Morre um pobre, não há dobres!

Que Deus é esse dos padres

Que não faz caso dos pobres?

 

Se pão não tenho, e os meus filhos

Me pedem pão a chorar,

Dou-lhes beijos, coitadinhos!

Que mais não lhes posso dar...

 

Sinto no mundo um rumor

Que anuncia um dia novo,

Andam profetas na terra

Abrindo os braços ao povo!

 

O sol nasceu cor de sangue

E a lua da mesma cor.

Gritam as bocas: Mais pão!

E os corações: Mais amor!

 

Bernardo de Passos,

Refúgio / Líricas Portuguesas. 2.ª Série

 (edição de Cabral do Nascimento)

 

 

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