20
Mai 15
20
Mai 15

DESISTIR DAS PALAVRAS COM PALAVRAS

Não é tempo de deixar que as coisas corram?

Abandono o caderno de rascunho,

saio do quarto onde escrevo à máquina.

 

As asas dos abelhões rodopiam

livres do delicado tecido das palavras:

o regato faz cintilar

 

uma folha que cai da cama, sombra confusa

caindo com ela, sem qualquer

ajuda da minha parte: as coisas entregues a si próprias

 

desfazem-se? Está a libertação já

escrita nos movimentos da coerência?

Imitaram as palavras desde o início

 

o trabalho que é melhor feito quando está por fazer?

Há quem pense sem crueldade despertar de novo;

há quem abrande a dura atenção

 

ao ver o orvalho secar, o esquilo erguer-se

(erecto, o cão da pradaria de ventre branco)

o efémero insecto colar-se todo o dia à rede da porta.

 

A. R. Ammons

(versão de Maria de Lourdes Guimarães)

Limiar #4, Porto, 1994

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07
Mai 15
07
Mai 15

OS OLHOS FALAM

A V. de C.

 

Pois se como sempre fomos,

               Somos

Pétalas da mesma flor,

E o que eu sinto, ou eu me iludo

               Tudo

Também sentes, gosto e dor;

 

Que te arrasa os olhos de água?

                Mágoa

Em que eu não deva tocar?

Oh! mas se há quem a suavize,

               Dize,

Vou-lhe um suspiro levar.

 

Não se alcança, não se avista,

               Dista

Daqui muito a causa, ou não?

Dos teus olhos, muito; e pouco,

               Louco,

Pouco do teu coração!

 

Sei o que vai em teu seio:

               Cheio

De mal compensado amor,

Debalde os lábio se calam;

               Falam 

Ainda os olhos melhor.

 

João de Deus, Campo de Flores

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06
Mai 15
06
Mai 15

MODERNA IDADE (CONVERSA INACABADA)

Havia cartas, alucinantes cartas

com o desespero dos homens dentro.

Dois homens dois: Paris / Lisboa; Hotel Nice

quarto interior por cima de uma leitaria;

maços de definitivos queimados junto

ao mata borrão; o Arco do Triunfo; os gases

da guerra, primeira dita a grande; a tradução

comercial no exacto inglês de quem morre

ferido talvez de desvairado exílio

no centro geométrico de si mesmo.

 

Dois homens ou mais em pessoa (Pessoa);

as cartas, irremediáveis cartas

cumprindo a distância que une as escritas,

separa os homens e o veneno lento de um

bagaço somado a uma fatal, total lucidez.

Ainda e sempre as cartas amarrando os homens

à demolidora narração deles próprios e todavia

à persistente busca da luz.

 

As cartas irrespondíveis, mas sempre

com resposta, dupla voz que conta,

fere, descarna e revela em papel timbrado

de escritório sombrio da baixa lisboeta

um ofício de chagas chamado: modernidade.

 

José Jorge Letria,

in Cadernos Despertar #1 (1982)

 

 

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05
Mai 15
05
Mai 15

POESIA

Nem música, nem flores,

Nem aves, nem aromas,

Nem rufos de tambores,

Nem baloiçar de palma;

Uma aridez enorme

Sobre a planície adusta

Que o céu azul decora

E aonde a vida dorme.

Deserto... E o que me custa

É não saber se é fora

Ou dentro da minh'alma!

 

Cabral do Nascimento,

in As Folhas de Poesia Távola Redonda,

edição de António Manuel Couto Viana (1988)

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