27
Dez 15
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Dez 15

ROMANCE

Por noite velha, truz truz,

Bateram à minha porta.

-- De onde vens, ó minha alma?

-- Venho morta, quase morta.

Já eu mal a conhecia,

De tão mudada que vinha;

Trazia todas quebradas

Suas asas de andorinha.

Mandei-lhe fazer a ceia,

Do melhor manjar que havia.

-- De onde vens, ó minha alma,

Que já mal te conhecia?

Mas a minha alma, calada,

Olhava e eu não respondia;

E nos seus formosos olhos

Quantas tristezas havia!

Mandei-lhe fazer a cama

Da melhor roupa que tinha

«Por cima damasco roxo

Por baixo cambraia fina».

-- Dorme, dorme ó minha alma,

Dorme e, para te embalar,

A boca me está cantando

Com vontade de chorar.

 

Afonso Lopes Vieira, Ilhas de Bruma (1917) /

/ Cabral do nascimento, Líricas Portuguesas. 2.ª séria)

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26
Dez 15
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Dez 15

QUINTO POEMA DO PESCADOR

Eu não sei de oração senão perguntas

ou silêncios ou gestos ou ficar

de noite frente ao mar não de mãos juntas

mas a pescar.

 

Não pesco só nas águas mas nos céus

e a minha pesca é quase uma oração

porque dou graças sem saber se Deus

é sim ou não.

 

Lisboa, 9.12.96

 

Manuel Alegre, Senhora das Tempestades (1998)

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25
Dez 15
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Dez 15

AOS CABELOS DE INÊS

Vejo-os tão vivos como a luz do dia,

Os cabelos de Inês, delgado oiro

Do amado tesoiro loiro

Que sob os grandes beijos refulgia.

 

Raios de fina luz, adormeceram

Com saudades dos beijos que lhe deram

Os beilos do seu grande Namorado;

Raios de fina luz, adormeceram

No silêncio do túmulo dormente,

E com seu vivo lume resplendente

Todo por dentro o hão iluminado...

 

Adormeceram no silêncio fundo

Onde faziam luar;

E cuidavam apenas cordar

Para o antigo amor -- no fundo do mundo !

 

Mas vieram à luz do claro dia,

Dorido oiro

Do tesoiro loiro

E resplendente

Que sob os grandes beijos refulgia

Da boca amorosa e ansiosa

E saudosa, eternamente!

 

Oiro tão loiro e tão doce,

De Amada, Santa e Rainha...

-- Não serão os de Iseu, que uma andorinha

Por maravilha no biquinho trouxe?

 

Afosno Lopes Vieira, Ilhas de Bruma (1917) /

Líricas Portuguesas 2.ª série (ed. de Cabral do Nascimento)

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22
Dez 15
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Dez 15

TERCEIRO POEMA DO PESCADOR

Sou apenas a cinza de uma estrela

um viajante de passagem

o rastro de uma bola de fogo arrefecida

um resto

neurónios nervos músculos ossos células

matéria perecível transformável

um bípede de fala e de guitarra

carregado de versos e metáforas

um metro e setenta e cinco de um planeta condenado

amanhã não serei senão uma faísca

um relâmpago na noite

uma faúlha

a sombra de uma sombra ou outra forma de energia

sou o último som de uma última sílaba

uma fórmula um acto uma alquimia

um desastre de Deus na escuridão do além

rosto nenhum corpo de nada

ou talvez a lágrima luminosa

de ninguém.

Lisboa, 31.12.96

 

Manuel Alegre, Senhora das Tempestades (1998) 

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19
Dez 15
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Dez 15

"A alma é como a lavra."

A alma é como a lavra.

Quando as nossas mãos voltam a desfiar

                         o milho amarelo de ouro?

Que outras mãos que as nossas semeiam

o medo e o silêncio da morte?

Porquê este frio? Porquê tão longa a noite?

Como se faz o mundo? Quando começa o mundo?

 

Maria Alexandre Dáskalos, Jardim das Delícias (2003)

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13
Dez 15
13
Dez 15

OLHANDO O MAR

Sentados na varanda olhando o mar

não sei ao certo o que pensam ou recordam

se um filho morto ou a viagem nunca feita

um verão há muito um só verão não mais.

Não sei sequer se esperam qualquer coisa

ou simplesmente olham o mar

sentados na varanda ao fim da tarde.

Dois traços sobre um azul de Turner

um outro traço; a sugestão de um barco

aquele em que navegam ao fim dsa tarde

quando pego na caneta e devagar começo: 

«Sentados na varanda olhando o mar»

 

5-4-2003

 

Manuel Alegre, Doze Naus (2007)

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12
Dez 15
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Dez 15

SURF

De pé na frágil tábua

onda a onda ele escrevia

poesia sobre a água.

 

Era uma escrita tão una

de tão perfeita harmonia

que o que ficava na espuma

 

não se podia apagar:

era a própria grafia

do poema do mar.

 

Foz do Arelho, Agosto de 2001

 

Manuel Alegre, Doze Naus (2007)

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11
Dez 15
11
Dez 15

SILÊNCIO DE VIDRO

Há quem creia em Deus e o veja em toda a parte.
Eu acredito em ti
E vejo-te em tudo o que na vida me dá profundo gosto de viver,
Tudo o que me sorri
E também em tudo o que me faz sofrer.
Vejo-te na recordação da minha infância
- Menino que sonhava estrelas iguais às minhas –
E no despontar das manhãs claras,
Quando o mundo era cheio de mistérios
E cada coisa uma interrogação.
Crescemos juntos sem nos conhecermos,
Mas quando nos cruzámos por acaso
Eu soube que eras tu.

 

Maria Eugénia Cunhal

http://daliedaqui.blogspot.pt/2015/12/eugenia-cunhal-poesia.html

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09
Dez 15
09
Dez 15

'ALL STRIPPED DOWN'

Cavalheiro idoso, calvo e sem jeito
para foder procura quem o ature
e acredite (às vezes) na ressurreição.

Nunca leu livros, cospe grosso
e ronca. Assunto sério: morrer com alguém.

 

Manuel de Freitas, O Coração de Sábado à Noite (2004)

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04
Dez 15
04
Dez 15

RAIZ

Canto a raiz do espaço na raiz

do tempo. E os passos por andar nos passos

caminhados. Começa o canto onde começo

caminho onde caminhas passo a passo.

E braço a braço meço o espaço dos teus braços

oitenta e nove mil metros quadrados.

E um país por achar neste país.

 

Manuel Alegre, O Canto e as Armas (1967)

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