22
Jan 16
22
Jan 16

À LUZ DOS VEGETAIS

Auvers-sur-Oise, 1890

 

                  À luz

Dos vegetais

As cores fervem

Na paleta

 

Uma rajada de tinta

Corta súbito

A fulva

                  paisagem

Entre

                  corvos

Trigais

                  e sombras

Para espanto

Das esferas

 

Enquanto a orelha

Sangra de nudez

A alma 

                  se banha

No fogo

Das papoulas!

 

Contador Borges,

in Claudio Daniel e Frederico Barbosa,

 Na Virada do Século --

Poesia de Invenção no Brasil (2002)

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20
Jan 16
20
Jan 16

ÀS CHAGAS

Divinas mãos e pés, peito rasgado,
Chagas em brandas carnes imprimidas,
Meu Deus, que, por salvar almas perdidas,
Por elas quereis ser crucificado.

Outra fé, outro amor, outro cuidado,
Outras dores às Vossas são devidas,
Outros corações limpos, outras vidas,
Outro querer no Vosso transformado.

Em vós se encerrou toda a piedade,
Ficou no mundo só toda a crueza,
Por isso cada um deu o que tinha:

Claros sinais de amor, ah, saudade!
Minha consolação, minha firmeza,
Chagas do meu Senhor, redenção minha.

Frei Agostinho da Cruz

in José Régio, Poesia de Ontem e de Hoje para o Nosso Povo Ler (1956)

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10
Jan 16
10
Jan 16

PARA ESPERARES O DIA

Fecha os teus olhos...

Não com quem os cerra,

mas para olhar a Alma.

Deixa o sonho boiar na bruma;

se a lágrima nascer

-- que não te importe:

amar

nem sempre é pecado!

 

Sonha...

Pressentir o Infinito

é possuí-lo já!...

 

E quando as tuas pálpebras se erguerem

-- seja o Dia!

 

Fernando Guedes

 in As Folhas de Poesia Távola Redonda

(edição de António Manuel Couto Viana)

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06
Jan 16
06
Jan 16

APELO

Pedido de socorro (onde estou eu?)

lançado ao mar numa garrafa escura.

À minha beira fica a sepultura;

dentro repousa o corpo que foi meu.

 

Aves de agoiro, a vida como é dura!

Tão pouco azul o derradeiro céu!

O vento norte alastra o claro véu

e esconde aos olhos a nudez impura.

 

Ah, sol de Junho!, ao menos és real:

teus finos dedos, alongados, tersos

retratam-me em tamanho natural.

 

Outro sinais ficam de mim dispersos

por sobre a água funda e o areal.

 

No bojo da garrafa vão só versos.

 

Daniel Filipe, in As Folhas de Poesia Távola Redonda

(esição de António Manuel Couto Viana)

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05
Jan 16
05
Jan 16

ESPELHO

Entre um pão

e outro pão,

o miolo nos dedos

 

-- que bolinhas

de pão

na toalha da mesa!

 

Longe as vendo

assim

tão concretas

 

-- sou como Deus

a Terra criando

e os mais planetas...

 

Pedro Alvim, A Esfera dos Dias (1985)

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03
Jan 16
03
Jan 16

A DUQUESA DE BRABANTE

Tem um leque de plumas gloriosas,

Na sua mão macia e cintilante,

De anéis de pedras finas preciosas

A Senhora Duquesa de Brabante.

 

Numa cadeira de espaldar doirado,

Escuta os galanteios dos barões.

-- É noite: e, sob o azul morno e calado,

Concebem, os jasmins e os corações.

 

Recorda o senhor Bispo acções passadas.

Falam damas de jóias e cetins.

Tratam barões de festas e caçadas

À moda goda: -- aos toques dos clarins,

 

Mas a Duquesa é triste. -- Oculta mágoa

Vela seu rosto de um solene véu.

-- Ao luar, sobre os tanques chora a água...

-- Cantando, os rouxinóis lembram o céu...

 

Dizem as lendas que Satã, vestido

De uma armadura feita de um brilhante,

Ousou falar do seu amor florido

À Senhora Duquesa de Brabante.

 

Dizem que o ouviram ao luar nas águas,

Mais loiro do que o sol, marmóreo, e lindo,

Tirar de uma viola estranhas mágoas,

Pelas noites que os cravos vêm abrindo...

 

Dizem mais que na seda das varetas

Do seu leque ducal de mil matizes...

Satã cantara as suas tranças pretas,

-- E os seus olhos mais fundos que as raízes!

 

Mas a Duquesa é triste. -- Oculta mágoa

Vela no seu rosto de um solene véu.

-- Ao luar, sobre os tanques chora a água...

-- Cantando, os rouxinóis lembram o céu...

 

O que é certo é que a pálida Senhora,

A transcendente Dama de Brabante,

Tem um filho horroroso... e de quem cora

O pai, no escuro, passeando errante.

 

É um filho horroroso e jamais visto! --

Raquítico, enfezado, excepcional,

Todo disforme, excêntrico, malquisto,

-- Pêlos de fera, e uivos de animal!

 

Parece irmão dos cerdos ou dos ursos,

Aborto e horror da brava Natureza...

-- Em vão tentam barões, com mil discursos,

Desenrugar a fronte da Duquesa.

 

Sempre a Duquesa é triste. -- Oculta mágoa

Vela seu rosto de um solene véu.

-- Ao luar, sobre os tanques chora a água...

-- Cantando, os rouxinóis lembram o céu...

 

Ora o monstro morreu. -- Pelas arcadas

Do palácio retinem festas, hinos.

Riem nobres, vilões, pelas estradas.

O próprio pai se ri, ouvindo os sinos...

 

Riem-se os monges pelo claustro antigo.

Riem vilões trigueiros pelas charruas.

Riem-se os padres, junto ao seu jazigo.

Riem-se nobres e peões nas ruas.

 

Riem aias, barões, erguendo os braços.

Riem, nos pátios, os truões também.

Passeia o duque, rindo, nos terraços.

-- Só chora o monstro, em alto choro, a mãe!...

 

Só, sobre o esquife do disforme morto,

Chora, sem trégua, a mísera mulher.

Chama os nomes mais ternos ao aborto...

-- Mesmo assim feio, a triste mãe o quer!

 

Só ela chora pelo morto!... A mágoa

Lhe arranca gritos que a ninguém mais deu!

-- Ao luar, sobre os tanques chora a água...

-- Cantando, os rouxinóis lembram o céu...

 

Gomes Leal,

in Edoi Lelia Doura --

Antologia das Vozes Comunicantes da Poesia Moderna Portuguesa

(edição de Herberto Helder, 1985)

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