30
Out 17
30
Out 17

"Ao passar junto da vide"

Ao passar junto da vide

Ela arrebatou-me o manto,

E logo lhe perguntei:

Porque me detestas tanto?

Ao que ela me respondeu:

Porque é que passas, ó rei,

Sem me dares saudação,

Não basta beberes-me o sangue

Que te aquece o coração?

 

Al-Mut'amid,

in Adalberto Alves, O Meu Corão É Árabe

-- A Poesia Luso-Árabe (1987) 

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24
Out 17
24
Out 17

CREPÚSCULO

Nas horas paradas, indecisas

em que os olhos olham

a mesma cor no mundo

e, um ténue claridade se suspende

no céu, entre o Sol e as estrelas...

no compasso de espera,

ainda dia e não sei se noite,

é que acorda o nosso coração.

 

E tange

a mesma canção amarga,

que vem das árvores,

dos pássaros, da gente

e onde a síncope da noite

colhe um a um todos os gestos.

 

Deixou de brilhar a água

translúcida do lago.

A árvore sustém na copa de sombra

os ramos que apenas sabem que vacilam.

Os pássaros são pios

gravados na memória

e em redor.

 

Percebem-se ainda os passos

da mulher que desce a rua.

O resto, é um traço vago

desenhado em reflexos baços

na penumbra.

 

Tudo se retrai e assusta

como num princípio de Vida.

 

Somos crianças e vamos

levadas por um destino comum

de sombras informes.

Mistério que somos

de nada e além

em agigantadas perspectivas de Morte

confundindo-se no mármore frio

de místicos temores...

 

...E a Vida continua.

Serena se levanta

do fundo da memória

nos ramos que se agitam,

nos pássaros que voam.

E balbucia e traça e canta

a mensagem futura

para embalar o dia que vem

na aurora distante.

 

Alexandre Dáskalos, Poesia (1961)

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23
Out 17
23
Out 17

"A folha em branco:"

A folha em branco:

um campo minado.

 

Liberto Cruz, Sequências (2000)

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20
Out 17
20
Out 17

NOSSO É O MAR

Nosso é o mar. Nosso e renosso.

Pla dor, pla teimosia, pela esperança.

Nosso até onde a vista o não alcança.

Nosso até onde é nosso o que for nosso.

 

Mas depois de o ter ganho abandonámos

alma e corpo à fadiga de o ter ganho.

Bartolomeu, não olhes. Não despertes

do sono que te dorme há cinco séculos.

 

Já o gume das quilhas não fecunda

teu ventre feminino, Mar aberto.

Falsa energia a nossa! Desflorado

teu sexo, Mar, aos corvos o cedemos.

 

Voluptuosa e saudável, tua carne

é convite e oferta como dantes.

Nós, mortos! Nós, sem força! Nós, sem fogo,

de uma saudade mole possuídos!

 

Sebastião da Gama, Pelo Sonho É que Vamos (póstumo, 1953)

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18
Out 17
18
Out 17

"Vestindo tão de luto como quando o enterraram,"

Vestindo tão de luto como quando o enterraram,

a Senhora que o conheceu dava generosa tristeza aos Cristos

alinhados como velas em bolo.

(Cristo de

noiva, a tradição.)

Imperfeitos uns, outros polidos, alguns mais corroídos.

Régio comprou por devoção, à dúzia, e vendeu-os bem.

 

Deus está atento, já

voltaram para ele,

para o seu nome.

 

José Emílio-Nelson, O Anjo Relicário (1999)

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04
Out 17
04
Out 17

NOCTURNO

Num céu vago,

A Lua é uma cabeça

Decepada

Que atiraram para um lago,

E ali ficou encalhada

Entre os limos,

Onde a água brilha estagnada...

 

Quando eu morrer afogado,

(Que eu quero morrer no mar!)

Hei-de vir à flor das vagas,

E boiar,

Até ficar encalhado

Entre espumas, algas, fragas...

 

Fecho as portas,

Recolho-me,

Olho o quarto, e, de repente,

Vejo a cama escancarada,

Toda aberta,

Como uma nudez oferta

Aos olhos dum impotente...

 

Que eu tenho medo aos lençóis,

E aos cobertores,

E ao meu sono que há-de vir.

Lá por fora há rouxinóis...

Mas eu não posso sair,

Que tenho medo

De passar nos corredores!

 

Em frente, no meu espelho,

Alguém me espreita,

Alguém me atrai, me repele.

Tem um sorriso de velho...

E não se deita,

Com medo de mim, e eu dele.

 

Uma por uma, alongadas

Pesadas

Como lágrimas de chumbo,

Despegam-se as badaladas

Da meia-noite.

Caem lentas, espaçadas...

Dão-e na cabeça..., doem-me!,

Batem-me no peito..., doem-me!,

Doem-me como pauladas...

 

A um canto, uma cantarinha,

De mão à cinta, sardónica,

Lembra uma rapariguinha

Decapitada

Que me pedisse a cabeça

De certa maneira irónica,

Grotesca e desesperada.

 

A seu lado, uma cabeça

Desenhada com dois traços

Olha-me, e, fixa, acusa-me

De lhe não ter dado braços.

 

Pobre cabeça

Que debuxei a nanquim,

Grudei sobre cartolina,

Pespeguei ali no muro,

Tudo isso a pensar em mim...!:

Que a minha angústia refina

Naquele traço,

E eu estou ali mais vivo,

E é ali que mais me sondo,

Do que no corpo cativo

Em que me escondo,

E embaraço...

 

Ai de mim, que poiso em tudo

Como a luz ou como a poeira!

Ai que me não sei maneira

De deixar de ser imenso...!

Por isso tenho tal medo:

Quando penso..., porque penso;

Se não penso..., porque não;

Tenho medo do segredo

Com que vim!

...Ou será tudo loucura,

Literatura,

Fogo-fátuo, solidão,

E eu não viverei, senão

No metro e meio de mim?...

 

Lá nos abismos do espelho,

Aquele tal que me espia,

Me seduz e me repele,

Tem um tique de ironia

Na boca fria.

 

Meu Deus!, serei eu aquele,

Serei essa cantarinha,

Este corpo a que me agarro,

Ou a cabeça a nanquim

Que, fixa de mim, me pede,

Projectada na parede

Como um escarro?...

 

Na minha mesa de estudo

(Pedra-mármor, morgue fria

Onde estudo a anatomia

De todos, tudo...!)

Há um retratinho modesto

Que me fico a olhar de rastros.

 

E tenho medo, também,

Desses dois astros

Com que me persegues, Mãe!

Que eu matei esse menino

A quem deste de mamar,

Que teve um berço, e embalaste,

Que geraste,

Que pariste,

Por quem rezaste e sofreste,

Por quem tens esse olhar triste,

Desenganado,

Celeste...

 

Mãe! tenho medo

De já ter andado tanto,

E de estar aqui fechado,

No espanto

Do meu segredo...!

 

Ai roupas que hei-de vestir,

Ai gestos que hei-de fazer,

Ai frases que hei-de tecer,

Ai palavras que hei-de ouvir...!...

Mãe! tenho medo do dia

Que vai romper!

 

E ao fundo do espelho, o tal,

Com seu tique de ironia

Na boca fria,

Seus hirtos lábios agudos,

Seus olhos mudos,

Ensina-me a hipocrisia

De continuar a viver.

 

José Régio, As Encruzilhadas de Deus (1936)

 

 

 

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