Num céu vago,
A Lua é uma cabeça
Decepada
Que atiraram para um lago,
E ali ficou encalhada
Entre os limos,
Onde a água brilha estagnada...
Quando eu morrer afogado,
(Que eu quero morrer no mar!)
Hei-de vir à flor das vagas,
E boiar,
Até ficar encalhado
Entre espumas, algas, fragas...
Fecho as portas,
Recolho-me,
Olho o quarto, e, de repente,
Vejo a cama escancarada,
Toda aberta,
Como uma nudez oferta
Aos olhos dum impotente...
Que eu tenho medo aos lençóis,
E aos cobertores,
E ao meu sono que há-de vir.
Lá por fora há rouxinóis...
Mas eu não posso sair,
Que tenho medo
De passar nos corredores!
Em frente, no meu espelho,
Alguém me espreita,
Alguém me atrai, me repele.
Tem um sorriso de velho...
E não se deita,
Com medo de mim, e eu dele.
Uma por uma, alongadas
Pesadas
Como lágrimas de chumbo,
Despegam-se as badaladas
Da meia-noite.
Caem lentas, espaçadas...
Dão-e na cabeça..., doem-me!,
Batem-me no peito..., doem-me!,
Doem-me como pauladas...
A um canto, uma cantarinha,
De mão à cinta, sardónica,
Lembra uma rapariguinha
Decapitada
Que me pedisse a cabeça
De certa maneira irónica,
Grotesca e desesperada.
A seu lado, uma cabeça
Desenhada com dois traços
Olha-me, e, fixa, acusa-me
De lhe não ter dado braços.
Pobre cabeça
Que debuxei a nanquim,
Grudei sobre cartolina,
Pespeguei ali no muro,
Tudo isso a pensar em mim...!:
Que a minha angústia refina
Naquele traço,
E eu estou ali mais vivo,
E é ali que mais me sondo,
Do que no corpo cativo
Em que me escondo,
E embaraço...
Ai de mim, que poiso em tudo
Como a luz ou como a poeira!
Ai que me não sei maneira
De deixar de ser imenso...!
Por isso tenho tal medo:
Quando penso..., porque penso;
Se não penso..., porque não;
Tenho medo do segredo
Com que vim!
...Ou será tudo loucura,
Literatura,
Fogo-fátuo, solidão,
E eu não viverei, senão
No metro e meio de mim?...
Lá nos abismos do espelho,
Aquele tal que me espia,
Me seduz e me repele,
Tem um tique de ironia
Na boca fria.
Meu Deus!, serei eu aquele,
Serei essa cantarinha,
Este corpo a que me agarro,
Ou a cabeça a nanquim
Que, fixa de mim, me pede,
Projectada na parede
Como um escarro?...
Na minha mesa de estudo
(Pedra-mármor, morgue fria
Onde estudo a anatomia
De todos, tudo...!)
Há um retratinho modesto
Que me fico a olhar de rastros.
E tenho medo, também,
Desses dois astros
Com que me persegues, Mãe!
Que eu matei esse menino
A quem deste de mamar,
Que teve um berço, e embalaste,
Que geraste,
Que pariste,
Por quem rezaste e sofreste,
Por quem tens esse olhar triste,
Desenganado,
Celeste...
Mãe! tenho medo
De já ter andado tanto,
E de estar aqui fechado,
No espanto
Do meu segredo...!
Ai roupas que hei-de vestir,
Ai gestos que hei-de fazer,
Ai frases que hei-de tecer,
Ai palavras que hei-de ouvir...!...
Mãe! tenho medo do dia
Que vai romper!
E ao fundo do espelho, o tal,
Com seu tique de ironia
Na boca fria,
Seus hirtos lábios agudos,
Seus olhos mudos,
Ensina-me a hipocrisia
De continuar a viver.
José Régio, As Encruzilhadas de Deus (1936)