EPIGRAMA
O cego deu à manivela
Da velha e triste pianola,
Que era a alegria da vila;
Mas já ninguém vem à janela.
-- Pois, vindo, davam-lhe esmola...
E, ocultos, podem ouvi-la.
Carlos Queirós, Desaparecido (1935)
O cego deu à manivela
Da velha e triste pianola,
Que era a alegria da vila;
Mas já ninguém vem à janela.
-- Pois, vindo, davam-lhe esmola...
E, ocultos, podem ouvi-la.
Carlos Queirós, Desaparecido (1935)
Vejam bem
Que não há
Só gaivotas
Em terra
Quando um homem
Se põe
A pensar
Quem lá vem
Dorme à noite
Ao relento
Na areia
Dorme à noite
Ao relento do mar
E se houver
Uma praça
De gente
Madura
E uma estátua
De febre
A arder
Anda alguém
Pela noite
De breu
À procura
E não há
Quem lhe queira
Valer
Vejam bem
Daquele homem
A fraca
Figura
Desbravando
Os caminhos
Do pão
E se houver
Uma praça
De gente
Madura
Ninguém vem
Levantá-lo
Do chão
Vejam bem
Que não há
Só gaivotas
Em terra
Quando um homem
Se põe
A pensar
José Afonso.
do livro homónimo,
coordenado por José Viale Moutinho (1972)
Dizes-me que me falta sexo
Mentirosa
Faltam-me apenas
quinze centímetros d'amor
Dick Hard, De Boas Erecções Está o Inferno Cheio (s.d.)
Ouve, meu cão,
Que há tanto tempo vejo
No teu certo dia a dia:
Uma coisa queria saber,
Tão fundo que pensasse
Que a sabia.
Como foi conseguido
Seres assim tão perfeito?
Como podes não falhar,
Mesmo a gente falha e sem jeito
E a gente que falta tanto,
Não faltar?
Maximiano Gonçalves, Ouvir a Palavra (2017)
no ano em que eu era comido pelo escorbuto
chegavam as tuas enviadas com limões de oiro
tu própria ias dessedentando a boca da viola
para salvar-me o canto
eis a ditosa amada, escrevi então
minha pátria
Fernando Assis Pacheco, Memórias do Contencioso (1976)
O que tu chamas tua paixão,
É tão-somente curiosidade.
E os teus desejos ferventes vão
Batendo as asas na irrealidade...
Curiosidade sentimental
Do seu aroma, da sua pele.
Sonhas um ventre de alvura tal,
Que escuro o linho fique ao pé dele.
Dentre os perfumes sutis que vêm
Das suas charpas, dos seus vestidos,
Isolar tentas o odor que tem
A trama rara dos seus tecidos.
Encanto a encanto, toda a prevês.
Afagos longos, carinhos sábios,
Carícias lentas, de uma maciez
Que se diriam feitas por lábios...
Tu te perguntas, curioso, quais
Serão seus gestos, balbuciamento,
Quando descerdes na espirais
Deslumbradoras do esquecimento...
E acima disso, buscas saber
Os seus instintos, suas tendências...
Espiar-lhe na alma por conhecer
O que há de sincero nas aparências.
E os teus desejos ferventes vão
Batendo as asas na irrealidade...
O que tu chamas tua paixão,
É tão-somente curiosidade.
Os Melhores Poemas de Manuel Bandeira
(edição de Francisco de Assis Barbosa)
bichos vinham dos
movimentos da terra e
trocavam comigo o olhar
por mãos quentes, água,
luz e pequenos espaços onde
o corpo pousava melhor
Valter Hugo Mãe, O Resto da Minha Alegria (2003)