28
Fev 18
28
Fev 18

A DÉBIL

Eu, que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.

Sentado à mesa dum café devasso,
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura,
Nesta Babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.

E, quando socorreste um miserável,
Eu, que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.

"Ela aí vem!" disse eu para os demais;
E pus-me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.

Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, — talvez que não o suspeites! -
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.

Ia passando, a quatro, o patriarca.
Triste eu saí. Doía-me a cabeça.
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exéquias dum monarca.

Adorável! Tu, muito natural,
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, num largo arborizado,
Uma estátua de rei num pedestal.

Sorriam, nos seus trens, os titulares;
E ao claro sol, guardava-te, no entanto,
A tua boa mãe, que te ama tanto,
Que não te morrerá sem te casares!

Soberbo dia! Impunha-me respeito
A limpidez do teu semblante grego;
E uma família, um ninho de sossego,
Desejava beijar sobre o teu peito.

Com elegância e sem ostentação,
Atravessavas branca, esbelta e fina,
Uma chusma de padres de batina,
E de altos funcionários da nação.

"Mas se a atropela o povo turbulento!
Se fosse, por acaso, ali pisada!"
De repente, paraste embaraçada
Ao pé dum numeroso ajuntamento.

E eu, que urdia estes fáceis esbocetos,
Julguei ver, com a vista de poeta,
Uma pombinha tímida e quieta
Num bando ameaçador de corvos pretos.

E foi, então, que eu, homem varonil,
Quis dedicar-te a minha pobre vida,
A ti, que és tênue, dócil, recolhida,
Eu, que sou hábil, prático, viril.

 

Cesário Verde

publicado por RAA às 13:56 | comentar | favorito (1)
26
Fev 18
26
Fev 18

LEI

Livre, livre mas sem asas.

Homem apenas

A fronte erguida

O olhar em frente

O lábio a sorrir

para a manhã...

 

Os passos

apenas vão seguindo

o que na rasgada treva se adivinha...

 

Os braços construindo

o que é flor, e é fruto,

e é semente,

e flor e fruto

de amanhã...

 

E vamos:

o mundo que nos leva

vai,

não fica à nossa frente.

 

Alexandre Dáskalos, Poesia (1961)

publicado por RAA às 13:32 | comentar | favorito
22
Fev 18
22
Fev 18

SINAL

     Quanto amor me tens,

com amor to pago.

-- Trago-te no dedo,

num anel que trago.

 

     Num anel redondo,

todo de oiro fino,

que é o teu sinal,

que é o meu destino.

 

     Este anel me basta

pra bater-te à porta.

Truz! truz! truz! -- na rua

como o frio corta!

 

     Como a chuva cai,

como o vento mia!

Mas abriste logo,

que eu é que batia.

 

     (Que outro anel tivera

som que te chamasse?)

Já teu vinho bebo,

pra que o frio me passe;

 

já na tua cama

me aconchego e deito;

já te chamo Esposa,

peito contra peito.

 

     Como tudo é simples,

como é tudo imenso!

Ó mistério enorme,

de um anel suspenso!

 

     E eis, na tua mão,

num anel igual,

brilha o teu destino,

luz o meu sinal.

 

Sebastião da Gama, Pelo Sonho É que Vamos (póst., 1953).

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21
Fev 18
21
Fev 18

CICLO

I

 

Convalesço... -- Quem sabe

Se é uma alma nova, esta que os olhos abre,

E repousa na vida, nas cousas, em mim,

Um cansaço que vem de séculos sem fim?!

 

A doença? -- O mistério, a dúvida, a estranheza...

Noites de angústia e febre, à espera, inutilmente,

Duma luz que incidisse, de repente,

Num verdadeiro indício de beleza.

 

Carlos Queirós, Desaparecido (1935)

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12
Fev 18
12
Fev 18

NA ESPALANADA DO MUSEU MARÍTIMO

Como este rio que parece dividir

dois métodos de arrumar a orfandade

de prédios acabrunhados e barracões

de ripas desalinhavadas, os solavancos

nas frases que se queriam mais escorreitas.

 

Um porta-contentores lança ferro,

liga os motores da ré e roda lentamente.

Os fumos do gasóleo espalham-se sobre um cardume

de ramos de palmeira que navega para a foz:

rio acima haverá quem se debruce

sobre o que lhe resta da tarde e peça

garantias ao que lhe tropeçou na infância

 

-- que mal recorda e em que, com algum esforço,

tenta acreditar. Outro neófito

da solidão, rendido à correnteza.

Antes do jantar, tem um par de horas

para ruminar o salitre da impermanência,

humores linfáticos. Regressará a casa,

esquecendo ser o que tem feito sempre.

 

José Alberto Oliveira, Mais Tarde (2003)

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09
Fev 18
09
Fev 18

"mulher pela casa fora pastora do meu sexo"

mulher pela casa fora pastora do meu sexo

de manhã perdida à tarde encontrada

afinal parecida com o líquen sobre as árvores

 

e outra vez

sem medo nem cuidado amar morrer

 

vozes falam de ti durante o dia

luzes brancas na bruma

frechas do sangue

 

ao tempo em que aprendias e depois

amor quase a tristeza

 

e depois amor quase gritaste

 

Fernando Assis Pacheco, Memórias do Contencioso (1976)

 

 

publicado por RAA às 13:39 | comentar | favorito (2)
07
Fev 18
07
Fev 18

ATENAS

Azeitonas, poeira e sol -- sábios os que por tais vocábulos a Grécia descobrem. Porque estão nus, e não mentem, e sabem que estão nus e não se cobrem. Por entre o mínimo são tudo de que tudo é feito -- e hóspedes são de Atenas mesmo quando pé a pé na rua vão para casa apenas...

 

Pedro Alvim, Os Jogadores de Xadrez (1986)

publicado por RAA às 13:27 | comentar | favorito