30
Ago 18
30
Ago 18

A DANÇA DOS TEMPOS POSSÍVEIS

O passado não dorme

nem jazz.

 

Recusa a quietude

da memória

mas sem me chamar

para dançar.

 

Gira mundo e sozinho, sozinho,

entrecruzando meus caminhos

presentes, lançando ao ar

o perfume em torvelinho

de passados outros, e presentes,e futuros

que poderiam ser, e ter sido, e contudo...

 

Thássio G. Ferreira, (Des)nu(do) (2016)

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29
Ago 18

RUGAS

Esta camisa

perfeitamente passada

pelas rugas

da minha mãe.

 

Daniel Jonas, Bisonte 8(2016

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29
Ago 18

PORTUGAL

O teu Produto Interno

é Bruto.

Filipa Leal, Vem à Quinta-Feira (2016)

publicado por RAA às 00:58 | comentar | favorito (1)
27
Ago 18
27
Ago 18

CRONOMETRIAS

Nos dias de Heródoto usavam-se

modos mais exactos de medir o tempo

o gotejar da água para a ânfora

o escorrer da areia, grão a grão

a viagem da sombra, como se não fosse

 

José Tolentino Mendonça, Teoria da Fronteira (2017)

publicado por RAA às 22:31 | comentar | favorito
23
Ago 18
23
Ago 18

GUARDA REPUBLICANA A CAVALO

Tu ladeavas o cavalo, rindo

da tua tão perfeita novidade.

Qual amazona de um destino findo,

o tempo não mudava a tua idade.

 

A pistola exibias sob a coxa

e do meu desejo tua troça ria.

Enredado na lírica mais frouxa,

um soneto pobríssimo eu trazia

 

só para teu controle e vistoria.

Mas logo se soltou o teu cavalo

para bem longe de mim e da poesia.

 

E se guardo teu riso enquanto falo

e me digo e desdigo em cada dia,

guarda republicana, em teu cavalo

 

trouxeste troça feita melodia.

 

Luís Filipe Castro Mendes, Um Novo Ulisses Regressa a Casa (2016)

publicado por RAA às 19:32 | comentar | favorito
19
Ago 18
19
Ago 18

AUTO-RETRATO 19

chamadas por engano

de vendas ou cobranças ou simplesmente dos filhos

exigindo qualquer coisa de que se lembraram

 

alimentar os animais

cuidar da plantação de soja

ir ao mercadinho comprar arroz feijão

e meia garrafa de pinga

 

tudo isso faz parte da natureza

 

Paulo José Miranda, Auto-retratos (2016)

publicado por RAA às 19:42 | comentar | favorito
13
Ago 18
13
Ago 18

"Funaná entorna, esfrega"

Funaná entorna, esfrega

dá ao chão o som inaudível

da arte. É cheiro de suor na escultura

mordida de mulher na altura da cintura

E busca a mão pastar

os degraus vermelhos das nádegas

Funaná entorta, esfrega a delícia

de espremer no corpo

o outro lado quente da balança.

 

Rony Moreira, Esticar o Infinito até à Borda do Prato (2017)

publicado por RAA às 18:36 | comentar | favorito
09
Ago 18
09
Ago 18

'ALLARGANDO'

A água até ao rosto, as mãos em concha,

olhavas o abraço furioso da corrente,

e nele o teu reflexo, em busca

do lugar de travessia mais seguro.

Quem és tu e onde estiveste a vida toda?

 

Sob a copa de amieiros, na penumbra,

ansiavas de repente por escrever tudo aquilo

que devia já ter escrito há muito tempo.

E contudo tinhas poucas opções.

Tão difícil chegar às palavras certas.

 

Nem sempre um homem pode

escolher quem é, regressar a casa

através das montanhas, encontrar o seu canto,

dedicar-se um bocadinho às sensações

que requerem silêncio e solidão.

 

Vítor Nogueira, Cantochão (2017)

publicado por RAA às 22:01 | comentar | favorito (1)
06
Ago 18
06
Ago 18

"o casebre numa faixa de negro plúmbeo"

o casebre numa faixa de negro plúmbeo

uma bíblia em cada quarto

 

os amantes açoitam-se com meias palavras

(o girassol nocturno que esfregam das mãos em fúria)

 

o homem alivia-se da sua inteligência

lendo é olhado

tem no dedo a brasa da atenção

 

ela roça vestígios pelo tapete

como quem conta

os inteiros degraus da queda

 

não sabem ainda quantos são

para partilhar uma sombra

 

Frederico Pedreira, A Noite Inteira (2017)

publicado por RAA às 13:47 | comentar | favorito
05
Ago 18
05
Ago 18

SALTO DA FÉ

aí vem o inevitável poema sobre marilyn

percebi ao pequeno-almoço

no dia mais quente do ano

 

norma jean gostava de esvaziar a tripa

talvez de barriga menos inchada

os vestidos niagaras fossem indolores

talvez o intestino limpo

lhe desse a leveza que os analistas

não logravam

talvez quisesse preparar o traseiro

para presidentes

senadores, capatazes

sem contar com dramaturgos.

enfim, rapazes...

 

de qualquer modo

esvaziava a tripa

antes de ler obras difíceis

e sérias

pois era rapariga de alto

saturno

 

ler kierkegaard

de intestino solto

é outra coisa

 

a pobre da regine olsen

é que provavelmente não sabia

 

Rosa Oliveira, Tardio (2017)

publicado por RAA às 20:57 | comentar | favorito