29
Set 18
29
Set 18

"O sol se insinua e ensina seus silêncios"

O sol se insinua e ensina seus silêncios

e já aflora lá fora a estridência dos gritos,

a irridência irritante das TVs tão cedo ligadas

o surdo monólogo dos que se creem diálogo

 

Tento falar, há em minha volta um vidro

espesso, tropeço em verbos feitos cacos.

Sempre assim, mal a palavra faz-se voo,

dolorosamente quebra-se no ar. Gritar?

 

Em todas as montanhas há um eco ao avesso,

leva os sons e os perde no vácuo, no vento

e o verso estanca. Há séculos tive um ouvinte

de velho cansou-se deste tempo de surdos.

 

Desde então, me calei,

quando eu for silêncio talvez me escutem.

 

Lucio Autran, Fragmentos de um Exílio Voluntário (2016)

publicado por RAA às 13:45 | comentar | favorito (2)
28
Set 18
28
Set 18

FAMIGERADO

Ninguém atentaria

pra ele

não fosse

 

o voo

               vigilante

               dos urubus.

 

Weslley Almeida, Memórias Fósseis (2016)

publicado por RAA às 18:37 | comentar | favorito
26
Set 18
26
Set 18

"Quem perder tudo ganha"

Quem perder tudo ganha

um jogo de lençóis

lâmpadas quase eternas

um fogão gás de bilha ou cidade conforme

um clássico do materialismo histórico edição revista

um passe social

um novo fôlego

a separação cirúrgica entre signo e referente

um punhado de cinzas lá para o fim

 

e ainda

uma infância reinventada

um incêndio em memória à escolha

 

Miguel Cardoso, Víveres (2016)

publicado por RAA às 13:46 | comentar | favorito
25
Set 18
25
Set 18

...PENÉLOPE (1)

Penélope tece o bordado

Tece

Destece

Tece

Destece

Desce

Padece

Entristece

Adoece

Envelhece

Fenece

Amortece

Enlouquece

Anoitece

Amanhece

Amadurece

Rejuvenesce

Cresce

Esquece

E desiste de esperar por Ulisses, que no fundo não a merece.

 

Tatiana Alves, O Amor Segundo... (2017)

publicado por RAA às 13:51 | comentar | favorito (1)
21
Set 18
21
Set 18

de A MENINA GOTINHA DE ÁGUA

[...]

Era

um dia de sol

na Primavera,

trinavam

os passarinhos

nos seus violinos,

tocavam os grilos

e os grilões

nos seus rabecões,

assobiavam os melros

nos seus flautins

e os sapos,

os sapinhos

e os sapões,

à porta

das suas casotas,

estavam a ouvir

contada pelo sapo Zé Manel

a história

dum menino

que foi poeta e pastor

da Primavera

e que era

muito amigo

dos sapos

e sapinhos

e sapões

e de todos

os que são

(como os sapos)

humildes mas têm

bom coração.

 

Papiniano Carlos, A Menina Gotinha de Água (1962)

Crianças-SapoZeManel-JoanaQuental-PapinianoCarlos

(Joana Quental)

 

publicado por RAA às 13:32 | comentar | favorito
20
Set 18
20
Set 18

"Sentes-te bem ao ar livre."

Sentes-te bem ao ar livre.

Ainda assim, preferes o ataúde.

 

Descansa, minha vida,

mesmo se tu até em sonhos acredites

que todos merecemos salvar-nos.

Sobrevivermo-nos.

 

Dorme, meu estupor,

enquanto as jarras de lírios

dissimulam a porta do teu breve inferno.

 

Já sei.

Tens medo.

Estás perdida na tua condição de mulher

e queres agora encontrar uma saída.

 

Relaxa, meu amor,

a meta é simples:

cair no esquecimento.

Tu vais lá chegar antes.

 

Golgona Anghel, Nadar na Piscina dos Pequenos (2017)

publicado por RAA às 19:26 | comentar | favorito
19
Set 18
19
Set 18

"O tempo"

O tempo

             com suas garras de rapina

deita raízes

            no chão rasteiro de nossas vidas.

 

 

 

                                   E ele mesmo as arranca

 

Lúcio Autran, Fragmentos de um Exílio Voluntário (2016)

publicado por RAA às 19:50 | comentar | favorito (1)
11
Set 18
11
Set 18

ONDAS GRAVITACIONAIS: REGISTOS

Explodiram pelo espaço em rota para lá

da imaginação. Não se sabe de Deus

neste processo de fenda de universos

 

E as palavras hesitam-se,

paradas.

 

             Não se ouviu nada, nada foi visto

claramente visto, mas é o que se chama

nesta língua de nós, criada e aprendida

em formato de azul: registo

 

Ana Luísa Amaral, What's in a Name? (2017)

publicado por RAA às 13:25 | comentar | favorito
09
Set 18
09
Set 18

"O rio correu entre nós"

O rio correu entre nós

ascendendo

para a terra. Espera-nos

o pó. Um pó

apaixonado.

 

Casimiro de Brito, Música Nua (2017)

publicado por RAA às 22:52 | comentar | favorito
08
Set 18
08
Set 18

OS VELHOS

já antevejo as ruas

engolidas por praças

donde se adivinha o mar

uma brisa a debater-se

contra o nevoeiro do entardecer

e uns velhos a soletrar

os prestígios de uma estirpe

a que nunca pertenceram,

até que se calam

e ficam a olhar o molhe

com os olhos rasos de água,

as mãos, essas,

há muito que estão cobertas

por uma sombra~e é por isso que não as mexem,

como se estivessem embrulhadas

num lençol de nostalgia

ou simplesmente de lama

ou mesmo de merda.

 

Manuel Afonso Costa, Memórias da Casa da China e de Outras Visitas (2017)

publicado por RAA às 01:55 | comentar | favorito (1)