10
Mar 14

TARDE DE INVERNO

Sobre o planalto adormecido

Num frio leito de inverno,

Agasalhado de brumas,

Um Sol terno,

Distraído...

 

De longe, a montanha sombria

Exala uma aragem fria.

 

Cheira a serra,

A terra,

Morta...

 

Mas com seu odor mais forte,

Ao apelo do vento norte

Responde

A minha melancolia...

 

 

Numa colina humilhada

De chuva, de ventanias,

Crucificado num céu dorido,

Surge um pastor como um vencido.

        Em fila, atrás,

Vem o rebanho humílimo balindo;

        Traz nos olhos a paz,

        A paz grave da serra;

E entre os dorsos compactos, de lã fina,

Paira a sombra primeira aventurosa,

O alvoroço da noite misteriosa,

        O pranto da neblina!...

 

Fausto José

presença #18 (1929)

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24
Mai 13

"Rosa, a mulata, desperta"

Rosa, a mulata, desperta

Com os morcegos à hora

Em que a Lua, nódoa incerta

E sem vulto, no céu aflora

 

E Vénus, mito propício

Que em seu destino decide,

Convoca as filhas do Vício

Ao culto que ela preside.

 

.......................................

 

Reinaldo Ferreira

in Manuel Ferreira, No Reino de Caliban III

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14
Mar 13

ZÉ JEITOSO

Quando a noite cai, o Zé Jeitoso começa

uma história simples, uma história qualquer,

com palavras de embalar

para que o mar

adormeça,

-- o mar, diverso como um corpo de mulher.

 

Zé Jeitoso conta -- e os colegas a ouvi-lo,

sentados no chão, deitados no chão,

pensam que para contar aquilo

Zé Jeitoso traz o mar no coração...

 

Zé Jeitoso fala de longínquos portos,

de perrices fantásticas do mar,

e julga que os companheiros mortos

passeiam no céu, em noites de luar...

 

Zé Jeitoso fala... E nas palavras de embalar

os companheiros ficam presos...

O mar adormece... E, por cima do mar,

as estrelas parecem cachimbos acesos...

 

Sidónio Muralha,

Passagem de Nível

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03
Mar 13

BÚZIO DO MAR

Praguejam pescadores: Ora esta, ora esta,

O mar na praia é um tambor em festa!

 

Danado e rouco ele há lá quem o fateixe!

O mar não anda bom...

E som, e som, som-som,

deita a fugir o peixe.

 

Meus patrícios, poveiros tal e qual

É a nobreza maior de Portugal!

 

Mesmo sou duma aldeia à beira-mar,

E ouço-o bem duas légias em redol:

Meio ano a lavoirar,

Outro meio ao anzol!

 

Meus patrícios cada qual

Tem o seu bote que é o seu casal.

 

Mas, o Oceano, o mar não anda bom:

Ondas são trambulhões, e trambulhões de som!

 

Ó mar, meu brutamontes,

Música, deixa ouvi-la da noitinha:

Eu quero ouvir o murmurar das fontes

Que a noite já se avizinha...

 

Afonso Duarte

presença #16

Coimbra, Novembro de 1928

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19
Out 12

"Ah, a noite que eu, sem fim, passei..."

Ah, a noite que eu, sem fim, passei...

O Tempo alargava a sua duração

E dava-lhe o cerne do que na vida amei.

Comentaram alguns, pela noite fora,

Como se ia escoando a sua mansidão.

Mas a noite somente consentia a aurora...

 

Das nuvens tão denso era o breu

Que já não se sabia o que era Terra ou Céu.

Ao longe o raio entre trevas se escondia:

Era um negro que entre lágrimas sorria.

 

Brandi alto o sabre da minha vontade

E tingi o manto dessa mesma aurora

Ao ferir o colo da escuridade

Com o sangue da noite, pela noite fora.

 

Ibn Sara

(Adalberto Alves)

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18
Jul 12

INTIMIDADE

Fogueira acesa

num imenso lugar comum.

É quase de noite.

 

Luís Serra

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05
Jul 12

"-- Aonde vais pela alta noite dentro?"

-- Aonde vais pela alta noite dentro?

-- Encontrar-me com quem me é vida e morte.

-- E não tens medo de sair tão só?

-- Sòzinha? Eu? Se vai comigo o amor!

 

Amaru

(Jorge de Sena)

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28
Jun 12

A ROSA IRREVELADA

Correi o mundo e procurai palavras novas para um poema.

Dos oceanos trazei nomes de peixes e remotas ilhas,

tranças de virgens, seios afogados,

mas

antes de tudo palavras para um poema.

 

Caminhai nas trevas em busca de uma rosa.

Colhei nos cardos a flor menosprezada.

Buscai no mar os líquenes, as esponjas,

trazei convosco pérolas,

peixes negros e plantas submarinas.

 

Trazei a náufraga de olhos devorados

por gaivotas. A náufraga de seios como luas

entre ciprestes de algas. A náufraga

de coxas como praias

onde o desejo espuma e desfalece.

 

Não procureis anelos e ternura

nem um pássaro de canto engaiolado.

Quero-vos noite escura, corpo escuro

de mulher em silêncio, rosa inviolável.

 

Trazei da noite palavras para um poema.

A irrevelada morte para um poema.

 

Domingos Carvalho da Silva

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26
Jun 12

ACODE A NOITE...

Acode a noite, o dia se apagando.

A cidade impõe-se outra face.

O mistério, agora, é lírico e é brando.

se a mão lhe toca, abre-se.

 

É noite funda. Dos bas-fond diversos

o som que vinha, lúbrico, morreu...

 

-- É Deus, que assiste à dor de fazer versos.

Foi a minh'alma que se mereceu.

 

António Luís Moita

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23
Mai 12

"Cai a noite."

Cai a noite.

     Sob o manto da sombra

     O braseiro é um bálsamo

     Que sara o aguilhoar

     Dos escorpiões do frio.

     Ardente, talhou as mantas,

     O nosso cálido abrigo

     Onde frio se não consente.

 

O incêndio na lareira

(Nós olhando fascinados

E a grande taça de vinho

Que vai passando em redor)

Mal nos permite a intimidade

E logo nos afasta.

 

É uma mãe,

     Que umas vezes nos amamenta

     E outra nos retira o peito.

 

Ibn Sara

(Adalberto Alves)

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