30
Mai 13

PAISAGEM COM MOVIMENTAÇÃO

Um pato deslizando

em lago oval e roxo

Ao crepúsculo

onde meninas

dançam Chopin

 

Ou era só um carimbo?

 

Carlos Saldanha

in Heloisa Buarque de Hollanda, 26 Poetas Hoje, 1975

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17
Abr 13

AO CAVALO DO CONDE DE SABUGAL, QUE FAZIA GRANDES CURVETAS

Galhardo bruto, teu bizarro alento

Música é nova com que aos olhos cantas,

Pois, na harmonia de cadências tantas,

É clave o freio, é solfa o movimento.

 

Ao compasso da rédea, ao instrumento

Do chão que tocas, quando a vista encantas,

Já baixas grave, e agudo já levantas,

Onde o pisar é som e o andar concento.

 

Cantam teus pés e teu meneio pronto,

Nas fugas, não, nas cláusulas medido,

Mil consonâncias forma em cada ponto.

 

Pois em solfas airosas suspendido,

Ergues em cada quebro um contrato,

Fazes em cada passo um sustenido.

 

Anónimo

(atribuído a Frei António das Chagas)

Maria Ema Tarracha Ferreira, Antologia Literária Comentada --

Época Classica -- Século XVII

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14
Fev 13

AMÉRICA

IV

 

Mas quando chegares a New Orleans

olha para os meus dentes teclas

de jazz,

minhas pernas múltiplas

de jazz,

minha cólera ébria

de jazz,

olha os mercadores da minha pele,

olha os matadores ianques

pedindo-me

jazz,

one

       two

             three

jazz,

sobre o meu sangue,

jazz,

milhões de palmas para mim

jazz.

 

Manuel Lima

(in Manuel Ferreira, No Reino de Caliban II)

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12
Jul 12

É ASSIM, A MÚSICA

A música é assim: pergunta,

insiste na demorada interrogação

-- sobre o amor?, o mundo?, a vida?

Não sabemos, e nunca

nunca o saberemos.

Como se nada dissesse vai

afinal dizendo tudo.

Assim: fluindo, ardendo até ser

fulguração -- por fim

o branco silêncio do deserto.

Antes porém, como sílaba trémula,

volta a romper, ferir,

acariciar a mais longínqua das estrelas.

 

Beja, 18.7.97

 

Eugénio de Andrade

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03
Jul 12

BERLIOZ

I

 

É assim que me vejo: cabeça pousada

nos seus joelhos, as mãos esquecidas

no sossego branco das suas mãos,

numa adoração sem tormento

que põe nos olhos o fulgor

que os livros e os nomes não dizem.

É assim que estou: com um único endereço,

o da saudade que o seu rosto

deixou nos meus dedos trémulos e mansos.

Não irei visitá-la a Lyon por temer importuná-la,

por não querer fazer da minha presença

um fardo, uma doença, um surdo incómodo.

Adorá-la-ei à distância, como se adoram

os tesouros intocáveis da abóbada dos céus.

 

José Jorge Letria

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29
Abr 12

TERRA

1

 

Lá em cima, o campanário branco e o galo dos ventos.

A torre deve dez metros de altura ao brasileiro dos Casais.

Meu avô doou um pedaço de quintal. Os outros fizeram o resto.

E hoje -- badalão! badalão! -- toda a serra

tem os ouvidos claros para o som de bronze.

 

Fernando Namora

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11
Abr 12

CANCIÓN

Pasé un verano intero escuchando ese disco.

Para que la emoción no se le fuera

lo escuchaba una vez cada día.

Si me quedaba hambriento salía a caminar.

 

A su manera la luz cantaba esa canción,

la cantó el mar, la dijo

un pájaro.

Lo pensé en un momento:

todo me está pasando para que me enamore.

 

Luego se fue el verano.

El pájaro

más seco que la rama

no volvió a abrir el pico.

 

Antonio José Ponte

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26
Dez 11

JAZZ

a noite tece ao redor.

há uma lua uma abó

bada um rosto de lilian gish

que alguém deixou de propósito,

atrás da mureta a

aspereza azul levita

e torna a afundar

abrindo prata e ror nessa hipnose.

correm notas pela escada

pérolas          as teclas

os degraus.

eis:                e depois

um sax desperta flores nos quadris.

 

de que lugar em mim verto esse caos?

 

Claudia Roquette-Pinto

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28
Nov 11

STARS FELL ON ALABAMA

Cannonball plantando o tema

bala de som

redondo e reto

brilho de balão.

 

Nós e o nosso drama

beijo em campo branco

coração martelo

e lá no centro

eu e você.

 

Cannonball colhendo tempo

som canhão de pesadelo

no rosto o sopro negro

«dos combates que vão dentro do peito».

 

Estrelas caindo aqui

ontem, a noite

plano imaginado

e lá no centro

Cannonball arde por dentro.

 

Frederico Barbosa

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19
Nov 11

NOCTURNO

É tão

estranha a paz

que não ter paz me traz (ouvir outrora

os Nocturnos a uma hora

como esta tão longe de tudo vendo embora

as luzes que se acendem nas

janelas em frente

bastaria

para que a nuvem da melancolia

sobre mim derramasse

a água sufocada)

como se, para sossegar, a vida

precisasse

de se sentir perdida.

 

Gastão Cruz

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