PAISAGEM COM MOVIMENTAÇÃO
Um pato deslizando
em lago oval e roxo
Ao crepúsculo
onde meninas
dançam Chopin
Ou era só um carimbo?
Carlos Saldanha
in Heloisa Buarque de Hollanda, 26 Poetas Hoje, 1975
Um pato deslizando
em lago oval e roxo
Ao crepúsculo
onde meninas
dançam Chopin
Ou era só um carimbo?
Carlos Saldanha
in Heloisa Buarque de Hollanda, 26 Poetas Hoje, 1975
Galhardo bruto, teu bizarro alento
Música é nova com que aos olhos cantas,
Pois, na harmonia de cadências tantas,
É clave o freio, é solfa o movimento.
Ao compasso da rédea, ao instrumento
Do chão que tocas, quando a vista encantas,
Já baixas grave, e agudo já levantas,
Onde o pisar é som e o andar concento.
Cantam teus pés e teu meneio pronto,
Nas fugas, não, nas cláusulas medido,
Mil consonâncias forma em cada ponto.
Pois em solfas airosas suspendido,
Ergues em cada quebro um contrato,
Fazes em cada passo um sustenido.
Anónimo
(atribuído a Frei António das Chagas)
Maria Ema Tarracha Ferreira, Antologia Literária Comentada --
Época Classica -- Século XVII
IV
Mas quando chegares a New Orleans
olha para os meus dentes teclas
de jazz,
minhas pernas múltiplas
de jazz,
minha cólera ébria
de jazz,
olha os mercadores da minha pele,
olha os matadores ianques
pedindo-me
jazz,
one
two
three
jazz,
sobre o meu sangue,
jazz,
milhões de palmas para mim
jazz.
Manuel Lima
(in Manuel Ferreira, No Reino de Caliban II)
A música é assim: pergunta,
insiste na demorada interrogação
-- sobre o amor?, o mundo?, a vida?
Não sabemos, e nunca
nunca o saberemos.
Como se nada dissesse vai
afinal dizendo tudo.
Assim: fluindo, ardendo até ser
fulguração -- por fim
o branco silêncio do deserto.
Antes porém, como sílaba trémula,
volta a romper, ferir,
acariciar a mais longínqua das estrelas.
Beja, 18.7.97
Eugénio de Andrade
I
É assim que me vejo: cabeça pousada
nos seus joelhos, as mãos esquecidas
no sossego branco das suas mãos,
numa adoração sem tormento
que põe nos olhos o fulgor
que os livros e os nomes não dizem.
É assim que estou: com um único endereço,
o da saudade que o seu rosto
deixou nos meus dedos trémulos e mansos.
Não irei visitá-la a Lyon por temer importuná-la,
por não querer fazer da minha presença
um fardo, uma doença, um surdo incómodo.
Adorá-la-ei à distância, como se adoram
os tesouros intocáveis da abóbada dos céus.
José Jorge Letria
1
Lá em cima, o campanário branco e o galo dos ventos.
A torre deve dez metros de altura ao brasileiro dos Casais.
Meu avô doou um pedaço de quintal. Os outros fizeram o resto.
E hoje -- badalão! badalão! -- toda a serra
tem os ouvidos claros para o som de bronze.
Fernando Namora
Pasé un verano intero escuchando ese disco.
Para que la emoción no se le fuera
lo escuchaba una vez cada día.
Si me quedaba hambriento salía a caminar.
A su manera la luz cantaba esa canción,
la cantó el mar, la dijo
un pájaro.
Lo pensé en un momento:
todo me está pasando para que me enamore.
Luego se fue el verano.
El pájaro
más seco que la rama
no volvió a abrir el pico.
Antonio José Ponte
a noite tece ao redor.
há uma lua uma abó
bada um rosto de lilian gish
que alguém deixou de propósito,
atrás da mureta a
aspereza azul levita
e torna a afundar
abrindo prata e ror nessa hipnose.
correm notas pela escada
pérolas as teclas
os degraus.
eis: e depois
um sax desperta flores nos quadris.
de que lugar em mim verto esse caos?
Claudia Roquette-Pinto
Cannonball plantando o tema
bala de som
redondo e reto
brilho de balão.
Nós e o nosso drama
beijo em campo branco
coração martelo
e lá no centro
eu e você.
Cannonball colhendo tempo
som canhão de pesadelo
no rosto o sopro negro
«dos combates que vão dentro do peito».
Estrelas caindo aqui
ontem, a noite
plano imaginado
e lá no centro
Cannonball arde por dentro.
Frederico Barbosa
É tão
estranha a paz
que não ter paz me traz (ouvir outrora
os Nocturnos a uma hora
como esta tão longe de tudo vendo embora
as luzes que se acendem nas
janelas em frente
bastaria
para que a nuvem da melancolia
sobre mim derramasse
a água sufocada)
como se, para sossegar, a vida
precisasse
de se sentir perdida.
Gastão Cruz