AURORA

O poeta ia bêbedo no bonde.

O dia nascia atrás dos quintais.

As pensões alegres dormiam tristíssimas.

As casas também iam bêbedas.

 

Tudo era irreparável.

Ninguém sabia que o mundo ia acabar

(apenas uma criança percebeu mas ficou calada),

que o mundo ia acabar às 7 e 45.

Últimos pensamentos! Últimos telegramas!

José, que colocava pronomes,

Helena, que amava os homens,

Sebastião, que se arruinava,

Artur, que não dizia nada,

embarcam para a eternidade.

 

O poeta está bêbedo,

mas escuta um apelo na aurora:

Vamos todos dançar

entre o bonde e a árvore?

 

Entre o bonde e a árvore

dançai, meus irmãos!

Embora sem música

dançai, meus irmãos!

Os filhos estão nascendo.

Com tamanha espontaneidade.

Como é maravilhoso o amor

(o amor e outros produtos).

Dançai, meus irmãos!

A morte virá depois

como um sacramento.

 

Carlos Drummond de Andrade, Brejo das Almas

publicado por RAA às 21:46 | comentar | favorito