BALADA DO REDONDO

Tudo o que à noite é mais claro

é escuro durante o dia

portais em que nem reparo

postigos de talhe raro

e o segredo o desamparo

a que se chama poesia.

 

E quando à noite me deito

apago a luz para ver

sobre a água do meu peito

afilado rosto estreito

rendas de lençol no leito

e o teu corpo de mulher.

 

E assim habito contigo

à luz da luz apagada

e sem palavras te digo

juras de amor inimigo

carícias a que não ligo

suspiros de namorada.

 

Árvores que o dia consome

casinhas de telha vã

ó ruas que a sombra come

ninguém conhece o meu nome

ninguém mata a minha fome

e logo à noite é manhã.

 

António Lobo Antunes,

Letrinhas de Cantigas (2002)

publicado por RAA às 02:49 | comentar | favorito