Sereno, mas resoluto
aqui estou -- eu mesmo! -- gritando desvairado
que há um fim por que luto
e me impede de passar ao outro lado.
Ante esta passagem de nível
nada de fáceis transposições
Do lado de cá -- pareça embora incrível
é que me meço: princípio e fim das multidões.
Não quero tudo quanto me prometem aliciantes
Nada quero, se para mim nada peço,
o meu desejar é outro -- o meu desejo é antes
o desejo dos muitos com que me pareço.
Quem quiser que venha comigo
nesta jornada terrena, humana e sincera
E se for só -- ainda assim prossigo
num mar de tumulto, impelindo os remos sem galera.
Que venham glaucas ondas em voragem
que ardam fogos infernais
que até os vermes tenham a coragem
de me cuspir no rosto e no mais.
Que os lobos uivem famintos
que os ventos redemoinhem furiosos
que até os répteis soltem seus instintos
e me envolvam traiçoeiros e viscosos.
Que me derrubem e arremessem ao chão
que espesinhem meu corpo já cansado
à tortura e ao chicote ainda responderei não
e a cada queda -- de novo serei alevantado.
E não transporei a linha divisória
entre o meu e o outro caminho
Mesmo que a minha luta não tenha glória
é no campo de combate que alinho.
Assim continuarei a lutar, ai a lutar!
num perigoso mar de paixões e de escolhos
e -- companheiros -- se neste sofrer me virdes chorar
não acrediteis em vossos olhos!
Luanda, 31-7-1952
António Jacinto,
in Manuel Ferreira, No Reino de Caliban II